Antes vistas como risco ao sistema financeiro, as stablecoins agora são tratadas por Estados Unidos e China como aliadas para ampliar a demanda por títulos do Tesouro e impulsionar suas moedas. No Brasil, onde já existem cinco versões atreladas ao real, a discussão ainda engatinha, mas pode abrir espaço para estratégias semelhantes em um momento em que os títulos públicos competem com a renda fixa isenta, segundo os players do setor.
As stablecoins são criptomoedas pareadas a outros ativos, como dólar, euro e real. Para cada unidade emitida, a empresa emissora precisa manter o mesmo valor em caixa. Nos EUA, a lei GENIUs Act, aprovada em julho, exige que stablecoins ligadas ao dólar tenham lastro integral de 1:1 a ativos altamente líquidos, como os Treasury bills, os títulos de dívida de curto prazo emitidos pelo país.
“Essa tecnologia inovadora fortalecerá o status do dólar como moeda de reserva global, expandirá o acesso à economia do dólar para bilhões em todo o mundo e levará a um aumento na demanda por títulos do Tesouro dos EUA, que lastreiam as stablecoins”, disse o secretário do Tesouro, Scott Bessent, em julho, logo após a aprovação da nova legislação.
A China, que baniu a negociação e mineração de criptomoedas em 2021, também passou a enxergar o potencial da medida. Segundo matéria publicada pela Reuters no final de agosto, o país estuda permitir stablecoins lastreadas no yuan para impulsionar a adoção global de sua moeda. No final de agosto, lideranças se reuniram para desenhar um plano.
A estratégia foi adotada ao mesmo tempo que a participação do yuan como moeda de pagamento global caiu para 2,88% em junho, o nível mais baixo em dois anos, segundo dados do Swift. O dólar americano, por outro lado, tem participação de mercado de 47,19%. Hoje, stablecoins atreladas ao dólar dominam 99% do mercado, segundo dados do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês).
As stablecoins atreladas ao Real
O Brasil tem cinco stablecoins atreladas ao real: BRZ, BRLA, cREAL, BBRL e BRL1. Apenas no ano passado, segundo estudo divulgado no mês passado pela Iporanga Ventures, elas movimentaram R$ 5 bilhões. O fornecimento total hoje é de US$ 24,22 milhões, com 73.056 holders (investidores que mantêm as criptos em carteira).
Pelo menos quatro delas têm parte do lastro em títulos públicos. Para Arthur Carvalho, diretor de cripto do Grupo Braza (emissor da BBRL), quanto maior a demanda por stablecoins em real, maior também a necessidade de ativos líquidos e seguros que lastreiem os tokens – entre eles, os títulos públicos federais.
“Esse movimento pode gerar um efeito positivo secundário: ampliar, de forma indireta, a base de investidores em dívida soberana. Com mais demanda por esses papéis, o Tesouro tende a conseguir emitir pagando taxas de juros menores, o que na prática reduz o custo da dívida pública”, disse. O BBRL tem 100% do lastro em títulos Letras Financeiras do Tesouro (LFTs).
O lastro da BRLA, emitido pela Avenia, é sempre em Tesouro Selic, “para não haver risco de marcação a mercado”, disse Leandro Noel, cofundador da empresa. Ele disse que assumindo que todas as usem dívida soberana como lastro, também acredita que poderá haver “aumento da distribuição da dívida soberana”.
Regulação pode ajudar
Primeira stablecoin de real do mercado, a BRZ, emitida pelo grupo Transfero, tem 80% em reais ou em títulos públicos e privados custodiados em instituições financeiras reguladas pelo BC. Além disso, tem também 20% em stablecoins de dólar (USDT ou USDC), mantidas na plataforma Fireblocks, que faz a custódia segura de ativos digitais.
Marlyson Silva, presidente da Transfero, afirmou que o crescimento recente tende a ampliar a demanda por títulos públicos via lastro. Segundo o CoinMarketCap, o BRZ tem hoje cerca de R$ 1 bilhão em valor de mercado, com movimentação média diária de aproximadamente 1 milhão de BRZ. A regulação, no entanto, tem papel importante nisso, disse.
“A demanda crescente por stablecoins lastreadas em real pode contribuir para reduzir o custo da dívida pública e ampliar a base de investidores em títulos do Tesouro, especialmente se a regulação exigir que o lastro seja majoritariamente composto por títulos públicos federais. Isso criaria uma demanda indireta por esses papéis, beneficiando o Tesouro Nacional”.
No Congresso, a regulação é discutida pelo Projeto de Lei 4.308/2024, de autoria do deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ). O texto prevê que stablecoins “emitidas deverão ser integralmente lastreadas nos ativos e nas moedas fiduciárias de referência especificados pela emissora”. O projeto aguarda parecer na Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação (CCTI).
Efeito Tether
Fabrício Tota, diretor de novos negócios da Mercado Bitcoin (MB), criadora do BRL1 ao lado de Bitso, Foxbit e Cainvest, acredita que deve ocorrer no Brasil o mesmo com as stablecoins em dólar. Em relatório divulgado em julho, a Tether, emissora do USDT, a maior stablecoin do mercado, divulgou que tem US$ 127 bilhões em títulos do Tesouro dos EUA, o que torna a empresa a 18ª maior detentora de treasuries do mundo, a frente de países como Coreia do Sul e Alemanha. O Brasil, para efeito de comparação, tem pouco mais de US$ 200 bilhões em treasuries.
“A Tether já figura entre os maiores detentores de treasuries. Em escala, o mesmo efeito pode acontecer aqui: mais base marginal de compradores e melhor micro-liquidez, o que pode tirar alguns bps do custo marginal ao longo do tempo”, falou Tota para a reportagem.
O BRL1 é pareado 1:1 ao real. Para cada um BRL1 emitido, é mantido um lastro igual ou superior. Segundo o MB, praticamente 100% está em LFT de curto prazo, “pela segurança soberana e liquidez”, disse Tota. Hoje, o BRL1 tem market cap de cerca de R$ 5,35 milhões. O volume total desde a listagem, há cerca de seis meses, superou R$ 500 milhões. O volume diário somado nas três exchanges onde é negociado fica entre R$ 5 e R$ 10 milhões.
O real algorítmico
A única exceção entre as criptos atreladas ao real é a cREAL, emitida pela blockchain Celo em 2022. Diferente das demais, ela é uma stablecoin algorítmica – tipo mais arriscado que não mantém suas reservas em dinheiro ou títulos, mas usa algoritmos para equilibrar oferta e demanda. A UST, stablecoin da blockchain Terra que jogou o mercado cripto em uma crise em 2022, era algorítmica.
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