Um ambicioso e controverso projeto de lei complementar, o PLP 153/2025, apresentado pelo deputado federal Paulo Guedes (PT-MG), propõe uma reconfiguração profunda da infraestrutura e governança digital do Brasil. Atualmente aguardando despacho para iniciar sua tramitação, a proposta busca instituir um novo tributo sobre as gigantes da tecnologia, as chamadas “big techs”, para financiar um objetivo audacioso: a criação de uma infraestrutura digital autônoma para o país, popularmente apelidada de “Starlink brasileira”.
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O plano, no entanto, é muito mais abrangente, e visa dar ao Brasil autoridade própria sobre recursos essenciais da internet, como a gestão de IPs e servidores DNS. Para analisar a proposta em suas complexas esferas técnica, jurídica e tributária, o TechTudo conversou com Thiago Ayub, diretor de tecnologia especializado em redes; Alexander Coelho, advogado especialista em Direito Digital; e André Félix, advogado e professor doutor em Direito Tributário. A seguir, entenda o que prevê o projeto, como o novo imposto funcionaria e quais os reais impactos para o usuário.
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Projeto de lei visa a criação de uma ‘Stanlink Brasileira’
Divulgação/SpaceX
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Projeto de lei quer taxar big techs para criar ‘Starlink brasileira’; entenda
No índice a abaixo, você confere todos os tópicos abordados neste guia.
O que prevê o projeto e qual é seu objetivo?
O novo imposto sobre serviços online
Impactos sobre o consumidor
Desafios técnicos e críticas ao projeto
O futuro da regulação e os caminhos para o Brasil
1. O que prevê o projeto e qual é seu objetivo?
A justificativa do PLP 153/2025 parte de um diagnóstico de que o Brasil vive em “subordinação digital”, dependente de estruturas externas para operar na internet. O objetivo declarado é, portanto, fortalecer a soberania nacional. Para isso, o projeto prevê que os recursos de um novo imposto sejam usados para universalizar o acesso à internet de alta velocidade e, principalmente, para criar dois instrumentos centrais: uma rede de satélites de baixa órbita (LEO), similar à Starlink da SpaceX, e uma autoridade brasileira para gerir protocolos da internet, como IPs e DNS.
No entanto, para o diretor de tecnologia Thiago Ayub, a proposta parte de premissas equivocadas. “Vejo que o objetivo é resolver um diagnóstico errôneo de falta inclusão digital e um diagnóstico errôneo de falta de soberania digital. O projeto não se presta a resolver esses dois problemas”, afirma. Segundo dados do IBGE de 2024 citados por Ayub, com 94% dos lares brasileiros já com acesso à internet, os 6% restantes poderiam ser atendidos com soluções mais baratas do que uma constelação estatal de satélites.
A proposta busca um Brasil mais conectado através de satélites
Divulgação/E-Space
Do ponto de vista jurídico, a ambição do projeto também gera questionamentos. O advogado Alexander Coelho o descreve como um “paradoxo”, pois, embora busque fortalecer a autonomia, o mecanismo escolhido “tensiona pilares do Marco Civil da Internet e pode gerar insegurança jurídica”. Segundo Coelho, a proposta caminha na fronteira entre a busca legítima por soberania e o risco de um controle estatal excessivo sobre a rede, o que exige uma análise cautelosa.
2. O novo imposto sobre serviços online
O coração financeiro do projeto é a Contribuição Social sobre a Propriedade de Sistemas de Interface (CSPI), um tributo de natureza e cálculo inéditos. A definição de “Sistema de Interface” é ampla, englobando na prática quase todos os grandes serviços digitais, como buscadores, redes sociais e aplicativos de mensagem.
A cobrança proposta é de R$ 12 anuais por “ponto de enlace”, definido como cada instalação de aplicativo em um dispositivo no Brasil. O texto prevê uma isenção para sistemas com até 3 milhões de usuários e um teto de arrecadação de R$ 3 bilhões por empresa. Para o advogado tributarista André Félix, a proposta tem falhas estruturais.
“Uma contribuição social incidente sobre as ‘ferramentas, plataformas, motores, buscadores…’ para criar a Starlink brasileira, não teria fundamento constitucional, pois não é uma função social do estado”, explica.
Ele ressalta que a Constituição exige que contribuições sociais financiem a atuação do Estado na área social, e a criação de uma rede de satélites não se enquadraria nessa categoria. O projeto também prevê mecanismos de coerção severos, como a suspensão das operações de uma plataforma no país em caso de não pagamento.
Félix aponta que essa medida é juridicamente questionável. Segundo ele, a proposta “deixa claro que está exigindo tributo como sanção, o que é vedado pela art. 3º do CTN (Código Tributário Nacional), e coagindo as empresas com uma sanção política que é vedada pela jurisprudência pátria, como se pode observar na Súmula 70 do STF”.
3. Impactos sobre o consumidor
Um dos argumentos centrais do autor do projeto é que o novo imposto não seria repassado ao consumidor, sendo absorvido pelos lucros das big techs. No entanto, os especialistas consultados pelo TechTudo são unânimes em discordar dessa premissa. Thiago Ayub explica de forma prática o provável efeito cascata: “O incremento de custos para se atuar no Brasil será repassado aos anunciantes que, por sua vez, diante do maior custo de marketing para realizar as mesmas vendas, repassarão o novo custo sob aumento de produtos e serviços oferecidos a brasileiros”.
A visão é compartilhada no campo jurídico. Para Alexander Coelho, “o maior risco é o aumento de custos” para o usuário final, seja por meio de mensalidades mais altas em serviços que hoje são pagos ou pela limitação de serviços gratuitos. O advogado tributarista André Félix reforça a tese, afirmando que a ideia de não haver repasse é economicamente implausível. “Na prática, é improvável. Em economia tributária, o custo tende a ser repassado — total ou parcialmente — ao usuário final”, conclui.
Dessa forma, a análise dos especialistas indica que, embora a cobrança legal seja direcionada às grandes empresas de tecnologia, a incidência econômica do tributo acabaria diluída em toda a cadeia de consumo. O custo seria absorvido pelos anunciantes e, consequentemente, embutido nos preços de produtos e serviços, resultando em um efeito inflacionário que, no fim das contas, seria pago pela sociedade, contradizendo a promessa original do projeto.
O custo do novo imposto seria repassado ao consumidor por meio do aumento no valor de planos ou mensalidades
Reprodução/RDNE/Stock project
4. Desafios técnicos e críticas ao projeto
A principal crítica dos especialistas é que o projeto propõe criar soluções estatais para problemas que não existem ou que já são bem endereçados por estruturas funcionais no Brasil. A proposta de criar uma autoridade nacional para gerir endereços IP e DNS, por exemplo, ignora o trabalho do Comitê Gestor da Internet (CGI.br).
“Os serviços de DNS raiz e endereço IP estão sob o controle de nenhuma soberania. Essa infraestrutura é controlada por organizações sem fins lucrativos de caráter privado, com representantes da sociedade civil. […] Nenhum projeto de lei de qualquer país terá a capacidade de mudar esse modelo de governança”, explica Thiago Ayub.
Da mesma forma, a ideia de criar uma “Starlink brasileira” para universalizar o acesso à internet desconsidera a infraestrutura já existente. “O acesso à internet se dá quase integralmente por cabos e a ligação do Brasil ao resto do mundo se dá através de cabos submarinos de fibra ótica. […] O papel do satélite é exclusivamente levar o acesso à internet em regiões remotas”, pontua Ayub, reforçando que satélites não substituem os cabos na estrutura central da rede.
Além disso, o Brasil já tem e opera o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC), projetado exatamente para fins de soberania e inclusão digital em áreas remotas. Para o advogado Alexander Coelho, a tentativa de nacionalizar funções da governança global da internet pode trazer mais riscos do que benefícios.
“Qualquer tentativa de ‘recentralizar’ funções globais exigiria negociação diplomática e alinhamento regulatório, sob pena de o Brasil se isolar da arquitetura da internet que, por definição, é global e interoperável”, alerta. A crítica consolidada é que o projeto, em vez de resolver lacunas, parece buscar a substituição de um modelo democrático e multissetorial por um de controle centralizado e estatal.
5. O futuro da regulação e os caminhos para o Brasil
Questionados sobre os caminhos mais equilibrados para o futuro, os especialistas apontam que a busca por soberania digital é legítima, mas a abordagem do projeto é equivocada. Para Thiago Ayub, a solução não é criar uma estatal para competir em um mercado aeroespacial complexo, mas sim investir na capacidade intelectual do país.
“Seríamos bem sucedidos se a captação de novos recursos financiasse pesquisa brasileira em nossas universidades e empresas para que, com tecnologia inovadora e nacional, resolvamos os mesmos problemas sem termos que fundar uma cadeia produtiva aeroespacial”, sugere o especialista.
A experiência internacional serve como um alerta. Segundo Alexander Coelho, países que tentaram uma “internet soberana” baseada no controle estatal, como Rússia e China, o fizeram ao custo de alto investimento e restrições à liberdade de expressão, enquanto a União Europeia busca fortalecer a segurança sem romper com a governança global. “A lição é clara: é possível buscar resiliência sem erguer muros digitais, desde que o objetivo seja proteger cidadãos, e não controlá-los”, afirma o advogado.
O projeto da ‘Starlink Brasileira’ teria um enorme custo para resolver um pequeno problema, segundo os especialistas
Divulgação/Telesat
A implementação do novo imposto, na visão do especialista tributário André Félix, traria mais problemas do que soluções. Ele adverte que a proposta, além de ter um fundamento constitucional questionável, vai na contramão da simplificação. “Esse novo tributo, se aprovado, tornará o Sistema Tributário brasileiro mais complexo, […] pode gerar litígios, sobreposição de cobranças e até retaliações comerciais. Em vez de simplificar, corre-se o risco de aumentar a incerteza regulatória em um setor estratégico”, conclui Félix.
Com informações de Projeto de Lei Complementar 153/2025
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