Vivemos em uma época que celebra o excesso. Excesso de informação, de estímulos, de possibilidades, de escolhas. A narrativa dominante é a do esgotamento por sobrecarga: o corpo queimado pelo excesso de demandas, o sujeito em colapso diante da pressão produtiva, o famoso burnout. Mas, no reverso desse cenário, cresce um mal-estar que não queima em chamas visíveis, mas se alastra como silêncio e apatia: o boreout.
Se o burnout se alimenta do fogo da hiperatividade, o boreout se instala no frio da ausência. Ele não é a exaustão pela multiplicidade de tarefas, mas a corrosão lenta produzida pela monotonia, pela subutilização, pela falta de sentido. É o colapso provocado não pelo excesso de trabalho, mas pelo esvaziamento subjetivo que transforma as horas em deserto.
Na psicanálise, Freud já havia nos alertado, em O Mal-Estar na Civilização (1930), que a vida humana é atravessada por uma renúncia pulsional constante. A cultura exige que o sujeito abdique de certas satisfações imediatas para que possa viver em sociedade. Mas o preço dessa renúncia nunca é pequeno: sempre resta um saldo de insatisfação, um resto pulsional que não encontra destino. No boreout, esse resto assume a forma de tédio paralisante, como se o sujeito estivesse aprisionado em uma vida que se repete sem oferecer pontos de desejo.
Lacan radicaliza essa perspectiva ao situar o desejo como estruturalmente ligado à falta. Desejamos não o objeto em si, mas aquilo que nele se perde, aquilo que sempre escapa. O trabalho, a carreira, os papéis sociais, todos podem funcionar como suportes desse desejo, desde que carreguem alguma inscrição simbólica que faça vibrar o sujeito. No boreout, essa inscrição se dissolve. O trabalho torna-se pura repetição, desprovida de enigma, incapaz de convocar o sujeito em sua singularidade. O resultado é um mal-estar sutil, mas devastador: a vida passa, mas não passa por dentro.
O tédio não é uma invenção contemporânea. Schopenhauer já o definia como a outra face da dor: enquanto sofremos pelo que falta, entediamos pelo que sobra. Mas o boreout é mais do que tédio filosófico; ele é tédio institucionalizado. É o sintoma de uma cultura que exige presença, mas não oferece lugar ao desejo. O sujeito é convocado a ocupar horas, assinar relatórios, responder mensagens, preencher agendas, mas sem que nada disso se articule a um horizonte de sentido. É a lógica do “fazer por fazer”, que transforma o trabalho em uma coreografia sem alma.
Se o burnout estilhaça pelo excesso, o boreout apaga pelo nada. Ambos revelam a mesma verdade incômoda: não é o volume de trabalho que adoece, mas a forma como o sujeito se inscreve (ou não) nele. Em um mundo obcecado por performance, falar em boreout soa quase como privilégio. Afinal, como pode alguém sofrer por não ter tanto a fazer? Mas é exatamente aqui que a psicanálise se mostra implacável: não é a quantidade de tarefas que determina o sofrimento, mas o modo como o desejo encontra ou não lugar naquilo que se faz.
O boreout é um colapso estético. Tudo se torna sem cor, sem brilho, sem urgência. A pessoa se vê no espelho e não se reconhece, como se a rotina tivesse esvaziado até mesmo a própria imagem. A repetição do mesmo transforma o tempo em peso, os dias em série, as horas em labirinto sem saída. O sujeito está lá, mas está ausente; cumpre funções, mas não habita o gesto.
Na linguagem lacaniana, poderíamos dizer que o boreout é a experiência de um gozo mortificado. Não o gozo da intensidade, mas o gozo da inércia, aquele que insiste no vazio. Ele não explode, mas corrói. Não arrebata, mas consome lentamente, deixando o sujeito em suspenso entre a obrigação de estar e a impossibilidade de investir libido nesse estar.
O mais inquietante no boreout é que ele não se denuncia com o mesmo barulho do burnout. Não há crise abrupta, não há colapso súbito. Ele age como um veneno suave, naturalizado. Muitos vivem anos nesse estado sem sequer nomeá-lo. Cumprindo horários, mantendo contratos, sorrindo em reuniões, mas carregando internamente a sensação de que a vida passou a ser um palco repetitivo onde o sujeito já não reconhece seu papel.
Poeticamente, poderíamos dizer que o boreout é o luxo triste do vazio: tempo sem desejo, função sem vida, rotina sem investimento. É a vida em modo silencioso, como se tudo estivesse em ordem, mas a alma permanecesse fora de cena.
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Na virada do século XXI, acostumados ao discurso do excesso, ainda não aprendemos a lidar com a patologia do vazio. O boreout nos lembra de algo essencial: o sujeito não sobrevive apenas de fazer, mas de significar. Sem esse fio simbólico que liga o trabalho ao desejo, a existência se torna um teatro sem espectadores, um gesto sem aplauso, uma coreografia que gira em falso.
E, assim, o boreout aparece como uma forma sofisticada de sofrimento contemporâneo: elegante, discreto, quase imperceptível. Mas profundamente devastador. Pois se o burnout grita, o boreout silencia. E, às vezes, é no silêncio que o inconsciente fala mais alto.