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O preço do luto: quanto custa morrer em São Paulo?


Quando Valéria Oliveira subiu as escadas para ver o marido, Alberto Albieri, encontrou o corpo dele já em estado de putrefação. Alberto chegou em casa no dia 19 de janeiro de 2024, uma sexta-feira, e, como de costume, foi dormir. Ele tinha o hábito de passar o fim de semana isolado no andar de cima do imóvel, mas morreu no sábado (20), antes de retornar ao convívio da família. Teve sua morte constatada pela esposa às 15h do domingo (21).
“Ele já estava de outra cor; roxo, preto, inchado, com vazamento de líquidos, e com uma espuma branca na boca. Não precisava nem tocar para ver que estava morto. Era nítido, pela aparência”, conta Valéria. “Eu fiquei tão traumatizada por essa visão que eu perdi a voz de imediato. Meu corpo inteiro tremeu, eu não sabia o que fazer.”

Passado o choque inicial, Valéria e a família ligaram para a polícia. Descobriram que deveriam contatar o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). “Falaram que eu tinha que colocar ele no chão e fazer massagem cardíaca. Eu disse: ‘mas não tem como fazer massagem cardíaca, ele já está muito inchado, está preto, não tem respiração e não tem mais sinal de vida. Responderam: ‘Mas é o procedimento que tem que ser feito’”, diz.
O SAMU foi até o local e constatou a morte. A polícia também compareceu e, em seguida, Valéria foi levada à delegacia. Depois, a perícia foi acionada. Nesse meio tempo, começaram a chegar os primeiros contatos de funerárias oferecendo seus serviços.
“Assim que você sai da delegacia, é automático: todas as funerárias já entram em contato e sabem que teve uma pessoa que morreu em casa”, conta. “Começou a vir um monte de telefonemas de funerária me oferecendo o serviço. Eu não dei telefone para ninguém. Tudo acontece sem você ter entrado em contato com eles”.
O serviço funerário informou que a prefeitura não buscaria o corpo no final de semana, apenas na segunda-feira (22). A família preferiu ir atrás do transporte por conta própria. “Tivemos que contratar o serviço [de forma particular]. Pelo estado do corpo, se viessem buscar na segunda-feira, estaria deplorável”.
As funerárias que entraram em contato com Valéria informaram orçamentos que variavam entre R$ 4.900 a R$ 6.200 para um enterro no cemitério Vila Formosa, na zona leste paulistana. Segundo indicam capturas de tela que você vê na galeria abaixo, os serviços oferecidos envolviam documentação, urna (caixão), fundo impermeável, enfeite floral dentro da urna, véu, manto, preparação do corpo, transporte, taxa de velório, taxa de compra da gaveta e assistência à família.
“Eu não tinha condição de pagar. Foi feita uma vaquinha, minha cunhada entrou em contato com os primos, parentes dele da Bahia e conseguimos o dinheiro para enterrar”, conta a viúva.

Com a liberação da perícia, o serviço funerário contratado foi buscar o corpo. Mas o processo de retirada só fez aumentar o incômodo causado pelos altos valores.
“O pessoal da funerária não tinha preparação nenhuma. Veio uma moça bem magrinha e um senhor para tirar um corpo em putrefação de uma casa de três andares, com dois lances de escada”, lembra. “Não tinham corda, não tinham luva, não tinham máscara, não tinham nada. Eles pegaram [alguns itens] aqui do meu salão de beleza e tivemos que pedir socorro para os vizinhos”, lembra. “Veio vizinho, um amigo, meu primo e meu irmão para ajudar a tirar o corpo lá de cima. Ele foi arrastado pelas escadas, mas era muito pesado. Quando chegou aqui embaixo, o saco tinha rasgado. Vazou sangue pela casa, pelo corredor. Foi uma cena triste.
No dia seguinte, segunda-feira (22), Valéria teria que reconhecer o corpo do marido no IML (Instituto Médico Legal) de Artur Alvim, bairro da zona leste de São Paulo, às 11h. “Quando nós chegamos, o corpo já não estava mais lá. Disseram que, naquele estado de putrefação, eles não fariam autópsia lá. Mandaram ele para o IML de Pinheiros. Aí, mais burocracia”, conta. Valéria foi convocada a reconhecer o corpo no bairro de Pinheiros às 17h30, onde foi atendida apenas às 20h.
O serviço funerário particular escolhido deu a possibilidade de fazer enterro em Diadema, cidade da região metropolitana de São Paulo. A mudança de local fazia o custo baixar para a faixa dos R$ 3.500. Valéria relata que o pacote oferecido dizia incluir a preparação do corpo, mas não especificava as etapas envolvidas no serviço.
Em alguns casos de óbito, é necessário realizar o processo conhecido como tanatopraxia. Normalmente, ele é feito no intuito de preparar o corpo para o velório, o momento final de contato com a família do morto. Em situações nas quais o cadáver está em estados mais avançados de decomposição, a tanatopraxia apenas adia o processo.
O serviço é opcional, já que familiares podem optar por não fazer velório. No entanto, é comum que algumas empresas não informem que o serviço é algo opcional, prática que já rendeu diversas denúncias de cobranças de preços exorbitantes, como revelou esta reportagem do G1.
No caso de Valéria, mesmo contratando o serviço funerário que dizia incluir a preparação do corpo, a empresa cobrou custos extras pelo maior uso de formol e pelo caixão (a princípio, pago na contratação).
“Eles disseram que, como já fazia muito tempo [da morte], ia ficar mais caro, porque o caixão tinha que ser o maior de todos, e seria usado uma quantidade muito maior de formol. Já que o cheiro estava insuportável, não tinha mais o que fazer; o caixão teria que ser lacrado. Por isso, ficou em torno de uns R$ 4.000”, relembra.
É comum que inchaços causados por acúmulos de líquidos tornem o cadáver mais pesado. Por isso, em certas situações, o peso informado pelo IML difere do atestado na hora da preparação do corpo, exigindo o uso de caixões que suportem um peso superior. Mas isso nem sempre acontece sem o aumento de custos, o que pode pegar famílias de surpresa no momento de luto.
Mudanças na lei
Desde 2023, vale um decreto (n°63.110) que determinou extinção do Serviço Funerário do município de São Paulo (SFMSP). Com isso, os serviços funerários e cemiteriais foram concedidos para empresas privadas. Quatro delas respondem pela cidade toda: Consolare, Cortel, Grupo Maya e Velar.
Devido à cobrança de valores considerados elevados, a representação do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) na Câmara de São Paulo apresentou uma ação ao STF (Supremo Tribunal Federal). O documento argumentava que a privatização dos serviços levou a uma “exploração comercial desenfreada” pelas empresas “nos piores momentos da vida das pessoas”. Em dezembro de 2024, o ministro Flávio Dino determinou, por meio de decisão liminar, um valor máximo a ser cobrado pelos serviços funerários e cemiteriais na cidade de São Paulo.
Com a liminar, as empresas concessionárias devem cobrar os valores máximos estabelecidos pela tabela publicada pela prefeitura. Na categoria “social”, os preços chegam a R$ 618,51 e na “popular”, R$ 1.575,17. Nas categorias padrão e luxo, as faixas de valores são de R$ 3.592,91 e R$ 6.057,69, respectivamente. Veja abaixo:
Preços máximos que podem ser cobrados pelos itens do serviço funerário, de acordo com a liminar do STF
Prefeitura de São Paulo
Antes da privatização, os pacotes populares chegavam a um custo total de R$ 754,72. Os valores abaixo foram publicados no Diário Oficial da Cidade (DOC) em janeiro de 2018.
Tabela de preços de contratação de serviços funerais em São Paulo (SP) em 2018
Diário Oficial da Prefeitura de São Paulo
Tanatopraxia e a dignidade pós-morte
Serviços complementares, como higienização, tamponamento, somatoconservação, tanatoestética e necromaquiagem são considerados opcionais. Por isso, podem ser cobrados a parte pelas empresas funerárias na preparação do corpo.
“Ao se tratar de um procedimento simples como higienização e tamponamento, o corpo deverá ser lavado com sabão degermante, ser aspirado nas cavidades nasais e oral, seguido de tamponamento com algodão hidrófilo ou ortopédico com o auxílio de um pó absorvível e instrumentos em aço inoxidável”, explica disse José Barboza, especialista em tanatopraxia e técnico em anatomia e necropsia pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Em média, o valor desses itens envolvem a manutenção instrumental e a mão de obra, que fica em torno de R$ 450.”
Na tanatopraxia, os profissionais buscam paralisar o estado de decomposição do cadáver, melhorar a aparência do morto e evitar a disseminação de doenças durante o velório. “A tanatopraxia não é um procedimento obrigatório em determinadas situações, como por exemplo, se o sepultamento ocorrer nas primeiras 24 horas de óbito no mesmo município”, diz o especialista.
Nos casos em que o corpo está em decomposição avançada, o procedimento de tanatopraxia não é recomendado. “A decomposição começa após as primeiras 24 horas de óbito, sendo a primeira etapa, a fase de coloração, na cavidade abdominal na lateral direita do abdômen — o cadáver apresenta uma mancha esverdeada. Nesse caso, eu ainda consigo fazer a tanatopraxia. Agora, se ele evoluiu para a segunda fase, chamada de gasosa, esse cadáver começa a ter gases no tecido subcutâneo, formação de bolhas, perda de tecido, um odor muito forte. Dessa fase em diante, não conseguimos fazer”, explica o especialista.
“Existem profissionais que ainda insistem em razer a tanatopraxia em corpos em estado de decomposição. Isso, pra mim, não é tanatopraxia”, diz Barboza. “Nesse caso, eles realizam um procedimento paliativo, em que tentam aspirar o máximo possível de gás para tentar eliminar o odor e passam uma máscara sintética no rosto para tentar deixar a aparência mais próxima [da pessoa viva]. É complicado deixar o caixão aberto durante a realização do velório, porque pode ser um fator na disseminação de doenças”, ressalta.
Na impossibilidade da preparação do corpo, o velório pode ocorrer com urnas fechadas, como aconteceu no caso do esposo de Valéria. “O caixão era de madeira lacrada, a janelinha fechada. Eles disseram para a gente que não tinha como colocar roupa pelo estado do corpo, e ele foi enterrado no saco preto, com a roupa jogada em cima”, relata.
O velório aconteceu na terça-feira (23), três dias após a morte, às 8h30. Devido às condições do corpo, durou pouco tempo — o sepultamento se deu às 10h. “O caixão foi totalmente lacrado, e ele tinha um volume, a madeira estava mais alta. Já tinha passado muito da hora”, afirma.
O serviço funerário contou com itens como fundo impermeável, enfeite floral dentro da urna, manto e véu. “Não teve flor; o que ia enfeitar ali, se a pessoa já estava em decomposição? Não teve o que prometeram”, pontua. “Teve uma coroa de flor, o caixão, umas velas, uma cruz bem velha e só. Não podiam ter dado um desconto, então?”.
No momento do sepultamento, mais duas taxas foram cobradas – a de velório (R$ 160) e a de sepultamento (R$ 126,43), como indica a imagem abaixo. Valéria também diz não ter recebido nenhuma nota que comprove o pagamento dos valores. Além disso, não soube informar o pacote contratado — social, popular, padrão ou luxo.
Taxas que constam na Certidão de Despesa de Funeral, descritas em nota entregue para Valéria Oliveira
Arquivo pessoal/Valéria Oliveira
A SP Regula (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Município de São Paulo) é o órgão municipal responsável por fiscalizar as concessionárias de serviços funerários. Cabe à agência garantir que as empresas cumpram suas obrigações, verificando as denúncias feitas pelos preços cobrados.
Em uma entrevista para o UOL em dezembro de 2024, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) defendeu a privatização. “Eu tenho que dizer que esse era o pior serviço da prefeitura. E, hoje, está melhor”, disse. “Agora, nós estamos falando de um negócio. E esse negócio fica bom quando é bom para o poder público e para o privado. O cara não vai fazer uma doação, ele vai fazer um investimento para poder ter o retorno.”
Como funciona o serviço gratuito
Segundo a prefeitura de São Paulo, para obter o serviço funerário gratuito, a pessoa precisa ter baixa renda ou ser doadora de órgãos. Quem solicita a gratuidade deve ser parente de primeiro grau na ordem sucessória (cônjuge, descendente ou irmão maiores de 18 anos) ou descendente direto (pai, mãe ou filhos). E também deve ter cadastro no CadÚnico, comprovando a condição de pobreza, com renda mensal familiar per capita de até meio salário mínimo ou renda mensal familiar de até três salários mínimos. Caso o cadastro esteja desatualizado, há um prazo de 60 dias para regularizar a situação, ao mesmo tempo em que se solicita o cancelamento da cobrança dos serviços
Ao todo, 22 cemitérios ficaram a cargo das concessionárias privadas. Mas a contratação do sepultamento gratuito é feita em apenas quatro locais. São eles: Dom Bosco (da empresa Cortel), São Luiz (Velar), Saudade (Maya) e Vila Formosa (Consolare). A gratuidade pode ser mantida fora dos cemitérios citados apenas quando a família possui jazigo próprio em outra unidade cemiterial.
Concessionárias responsáveis pelos serviços funerários dos 22 cemitérios em São Paulo (SP)
Prefeitura de São Paulo
De acordo com o Decreto 59.196 do Art. 80, estão inclusos no Serviço de Gratuidade: caixão ou urna funerária; transporte; cerimonial para o velório; aluguel da sala de velório, pelo prazo mínimo de 2 (duas) horas; sepultamento; cessão de gaveta unitária com prazo fixo de 3 anos, insuscetível de prorrogação e de transmissão; exumação; cremação (apenas se atender aos requisitos dos artigos 44 a 50); e utilização de câmara fria.
Com a concessão, o transporte de corpos passou a ser realizado exclusivamente pelas empresas privadas — incluindo os casos de gratuidade. Segundo o Grupo Maya e a Velar, os beneficiados pela isenção podem escolher entre um dos quatro cemitérios habilitados para realização do sepultamento, independente do local de óbito.
No entanto, a lei não abarca a concessão da gratuidade para serviços complementares como higienização, tamponamento, somatoconservação (tanatopraxia), tanatoestética e necromaquiagem. Por se tratar de uma contratação opcional, os valores não são pré-definidos pelas autoridades, e ficam a critério das empresas privadas.
“A tanatopraxia, apesar de não ser obrigatória, é um procedimento muito humano, que leva um conforto para a família. Infelizmente, tem muitas empresas que abusam [dos valores]”, ressalta Barboza.
O outro lado
Questionado pela GALILEU sobre o caso de Valéria e o contato não desejado de funerárias após o registro da morte, o Serviço de Segurança Pública (SSP) de São Paulo declarou, em nota:
“A Polícia Civil esclarece que, quando é comunicada sobre casos de morte natural ocorridos em residências, uma equipe comparece ao local para verificar se há indícios de crime. Na ausência desses indícios, é elaborado o boletim de ocorrência e requisitado o envio do carro de cadáver do Serviço de Verificação de Óbito (SVO), que realiza a remoção e encaminhamento do corpo. A família é orientada a comparecer ao SVO, onde médicos realizam exames para confirmar a causa da morte. Caso seja constatada morte natural, os familiares podem então contratar o serviço funerário de sua escolha. As informações pessoais dos envolvidos são compartilhadas apenas com órgãos e profissionais diretamente responsáveis pelo atendimento, sendo preservadas de acordo com a legislação vigente.
A Consolare, uma das empresas concessionárias do serviço funerário em São Paulo, informou à GALILEU os valores referentes aos serviços complementares que oferece.
“O serviço de Tanatopraxia, que inclui preparação do corpo, higienização e necromaquiagem, tem o valor de R$ 1.500 quando realizado até 12 horas após o falecimento. Para prazos superiores a 12 horas, o valor é de R$ 2.200. Já a higienização tem o valor de R$ 400, e a necromaquiagem, de R$ 500. A Consolare esclarece ainda que, conforme orientação da Anvisa, o tempo máximo de velório sem a aplicação do serviço de tanatopraxia é de até 24 horas após o falecimento. Após esse prazo, caso a tanatopraxia não seja realizada, a urna deverá ser lacrada, em atendimento à Resolução SS-28, de 25/02/2013.”
Em nota enviada à GALILEU, o Grupo Maya, outra concessionária da capital paulistana, disse:
As receitas tarifárias são todas aquelas que são definidas unilateralmente pela Prefeitura, e nesse rol existem os pacotes funerários. Nesses pacotes funerários não estão inclusos os serviços complementares (acessórios), como: coroa, tanatopraxia, necromaquiagem… Esses são contratados à parte e possuem um valor individual que varia a depender de diversas variáveis.
Já a Cortel declarou o seguinte:
A Cortel SP informa que os valores desses serviços variam de R$ 217,52 (higienização, tamponamento, necromaquiagem e barbeamento de cadáver) a R$ 4.371 (embalsamento). São consideradas algumas condições específicas, como situação do corpo, se passou pelo IML, se necessita de viagem para o exterior, entre outras