Há poucos anos, foi publicada uma pesquisa científica mostrando que as abelhas têm um comportamento equivalente ao brincar — elas ficavam rolando bolinhas de madeira, simplesmente por rolar. Parece que essa é uma tendência no reino animal: brincadeiras já foram registradas em mamíferos, aves, répteis e cefalópodes. Nada é tão disseminado na natureza por acaso, então deve haver alguma vantagem nisso — provavelmente o prazer de brincar estimula a prática de habilidades importantes para a sobrevivência.
Com sua criatividade, contudo, os seres humanos são capazes de elevar essa prática a níveis incríveis de sofisticação, aproveitando praticamente qualquer habilidade para brincar. Minha mais recente surpresa foi descobrir que até a percepção visual de cores foi transformada em diversão num jogo recente. Mas, antes de falar dele, é bom um pouco de contexto.
Há dez anos, em fevereiro de 2015, uma foto se tornou um dos maiores fenômenos da internet. Ela mostrava um simples vestido, mas enquanto algumas pessoas enxergavam a peça azul com listras pretas, outras viam o vestido branco com listras douradas. Esse desconforto — que por vezes beirava a inconformidade — foi um dos maiores impulsos para a disseminação exponencial da história, como se de repente todos precisássemos confirmar se os outros enxergavam o mesmo que nós.
Não, não enxergavam. O que, a rigor, não era uma descoberta tão nova assim. No século 18, o químico britânico John Dalton percebeu que seu irmão e ele não enxergavam as cores da mesma maneira que outras pessoas. A folha de louro, para ele, tinha a mesma cor de um bloco de cera para selar envelopes — que os outros afirmavam ser vermelha. Cientista meticuloso, ele reuniu suas observações e as enviou à Royal Society num artigo chamado Extraordinary facts relating to the vision of colours, de 1794, considerado a primeira descrição da condição médica posteriormente batizada de daltonismo, em sua homenagem. No daltonismo, as células dos olhos que reagem a diferentes comprimentos de onda do espectro luminoso — chamadas cones — não funcionam adequadamente. Esses fotorreceptores são de três tipos, reagindo ao vermelho, verde ou azul, e a percepção prejudicada dependerá de qual ou quais deles forem afetados.
Isso, no entanto, não aliviava a aflição das pessoas, já que, no caso do vestido, a confusão não estava ligada a qualquer alteração na fisiologia visual — mesmo quem tinha a visão perfeita não chegava a um consenso. Ainda assim, a explicação não era nova.
No século 19, o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe publicou o livro Teoria das cores, no qual discordava de Isaac Newton ao afirmar que a percepção de cor não era um fenômeno puramente físico, mas que dependia do observador, levando em conta aspectos subjetivos até então ignorados. A sensação da cor, segundo ele, dependia de quem a enxergava. Teorias neurocientíficas atuais corroboram as ideias de Goethe ao explicar, por exemplo, como as cores se mantêm constantes para nós mesmo com mudanças de iluminação: a maçã vermelha na fruteira tem o mesmo tom de manhã, à tarde ou à noite, quando acendemos a luz artificial. Isso porque o cérebro compara as cores em diferentes partes da cena e ajusta ativamente a percepção para manter a tonalidade estável.
Vem daí a explicação mais aceita para o caso do vestido: o cérebro estima qual é a cor da luz presente na cena e então a compensa. Se assume que a luz é natural — que usualmente tem mais componente azul —, essa faixa do espectro é “descontada”, embranquecendo o vestido. Mas, se assume que se trata de luz artificial, desconta-se a luz amarela, intensificando o azul e escurecendo as listras.
Agora, imagine a confusão de alguém que trabalha em gráfica e precisa imprimir algo na cor exata que o cliente deseja. Como enxergamos o mundo de formas diferentes, é impossível chegar a um acordo apenas descrevendo o que se deseja. Por isso, criam-se mostruários, para que as pessoas possam apontar exatamente o que querem.
Após trabalhar por anos nesse mercado, o designer Scotty Brady transformou sua experiência no jogo Hues with Cues, lançado em 2025 no Brasil pela editora Grok com o título Cores com Dicas. Até dez jogadores se reúnem em torno de um tabuleiro com 480 cores e tons diferentes, distribuídos em filas e colunas.
Jogo “Cores e Dicas”, lançado no Brasil
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A casa A1, por exemplo, tem uma espécie de bordô, enquanto a P30 exibe um azul celeste. Na sua vez, o jogador sorteia uma carta e precisa dar uma dica para que os outros participantes descubram qual cor ele pegou. Inicialmente, apenas uma palavra — que pode, então, ser complementada por outra dica com até duas palavras. “Sushi”, por exemplo, poderia ser seguida por “salmão cru”. Quem acerta na mosca ganha 3 pontos; quem fica nas adjacências, marca 2. O jogador da vez, que deu as dicas, ganha um ponto para cada participante que pontuar dessa maneira.
Eu já conhecia jogos que transformavam em diversão o exercício da memória, da coordenação motora, do vocabulário e até da empatia. Mas esse é o primeiro que conheço que nos coloca para brincar com a percepção de cores — um desafio que, ao mesmo tempo, diverte e nos lembra que as coisas não são necessariamente da forma como as enxergamos. Motivo pelo qual, se queremos entrar em acordo, é preciso uma boa dose de esforço na hora de comunicar o que estamos vendo.