Ao escrever, artistas registram processos, formulam conceitos e, às vezes, constroem obras que não existiriam de outra forma.
Uma carta de Yayoi Kusama a Georgia O’Keeffe foi decisiva para que a jovem artista deixasse o Japão rumo aos Estados Unidos. Já no início do século XX, Marcel Duchamp trocava cartas com Katherine Dreier que funcionavam como ensaios sobre arte e linguagem, antecipando discussões que levaria às exposições do grupo Société Anonyme. Décadas depois, Ray Johnson transformaria o correio em meio artístico, criando uma rede internacional de trocas conhecida como “mail art”.
Alguns transformaram o hábito epistolar em marca de sua obra. On Kawara, por exemplo, enviava diariamente postais com a frase “I am still alive” ou com registros precisos da hora em que acordava, fazendo da carta um marcador de tempo e existência. Eva Hesse deixou anotações e cartas para amigos que documentam dúvidas e impasses de ateliê, hoje fundamentais para entender sua produção.
No Brasil, além das conhecidas trocas entre Lygia Clark e Hélio Oiticica, há os diários-cartas de Lygia Pape e os cadernos de Anna Bella Geiger, que combinam texto, desenho e colagem em anotações sobre política, geografia e corpo.
Yayoi Kusama e Georgia O’Keeffe
Em 15 de novembro de 1955, ainda vivendo no Japão, Yayoi Kusama enviou, pela primeira vez, uma carta a Georgia O’Keeffe. Ela incluía fotos e duas aquarelas, ao mesmo tempo em que expressava sua admiração e uma pergunta carregada de vulnerabilidade: “Estou apenas no primeiro passo da vida longa e difícil de ser pintora — você me mostraria o caminho?” Vinte dias depois, em 4 de dezembro, Kusama recebeu uma resposta memorável. O’Keeffe ofereceu-se para apresentá-la a galeristas na cena artística de Nova York, escreveu sobre os desafios de viver de arte e encorajou-a a tentar a sorte na América.
Esse apoio é hoje considerado fundamental para que Kusama decidisse se mudar para os Estados Unidos, o que transformou para sempre sua carreira. De uma artista praticamente desconhecida em Tóquio, ela se tornou, nas décadas seguintes, uma figura central no movimento de arte pop, pioneira em instalações imersivas e reconhecida globalmente. Uma reprodução da correspondência está preservada no Marie Selby Botanical Gardens e foi reproduzida em mostras retrospectivas em 2024, onde Kusama ressalta que “aquela carta foi o primeiro portal para o mundo exterior”. De modo sutil, a escrita manifestou confiança, construiu um vínculo geracional e exigiu coragem.
Vincent van Gogh e Theo van Gogh
A correspondência entre Vincent van Gogh e seu irmão Theo, trocada entre 1872 e 1890, faz parte de um conjunto de 903 cartas preservadas. Destas, cerca de 658 foram escritas por Vincent a Theo (incluindo sete coassinadas com Jo van Gogh-Bonger) e 39 enviadas por Theo a Vincent. Muitas contêm esboços detalhados, transformando o material em um registro íntimo de sua prática artística e de suas angústias pessoais.
Embora sobrevivendo na solidão da província francesa, Vincent pedia a Theo — corretor de arte em Paris — que avaliasse seus quadros e facilitasse conexões com galeristas. Em uma carta de julho de 1890, ele descreve campos de trigo sob céus turbulentos: “tentei expressar tristeza extrema, solidão”. Os esboços incluídos fornecem insights sobre sua técnica — o uso de camadas e cores intensas para traduzir emoção — e mostram seu processo criativo, tengem sofrimento e frieza em igual medida. Hoje, as cartas estão preservadas no Van Gogh Museum, em Amsterdã, e foram transcritas e publicadas em múltiplos volumes, auxiliando historiadores, críticos e público em geral a compreender para além do artista, o homem que foi — suas angústias, suas dúvidas, sua urgência poética.
Hélio Oiticica e Lygia Clark
Entre 1964 e 1974, uma correspondência vital — estimada em mais de 650 cartas — circulou entre Hélio Oiticica e Lygia Clark, dois dos maiores nomes da arte brasileira do século XX. Era um diálogo inteso sobre corpo, vivência, objeto e coletivo. Suas cartas, longe de conversas literais, depositam fragmentos discursivos e visuais. Frases como “a obra não é objeto, é evento”, escritas em meias linhas; excertos sobre sensorialidade, cor, interação, assim como cópias de convites para experiências participativas, bilhetes para estúdios improvisados e esboços colados nas margens.
Esse material situa o período em que Oiticica desenvolvia os Parangolés, Penetráveis e Tropicália, enquanto Clark avançava no campo dos Objetos Relacionais e das estruturas vivenciais. As cartas estão preservadas no acervo do MASP e foram reunidas em edição bilíngue publicada em 2018, com prefácio de Thiago Mesquita. Nelas, percebe-se uma linguagem que articula teoria e afeto — um exercício que se afirma como parte integrante de suas práticas artísticas.
Paul Cézanne e Émile Bernard
A correspondência entre Paul Cézanne e o jovem Émile Bernard, entre 1904 e 1906, registra um raro momento em que o pintor provençal buscou colocar em palavras sua visão da natureza. Cézanne escrevia pouco, mas nessas cartas tentou formular, com precisão quase pedagógica, princípios que se tornariam pilares da arte moderna.
Em 15 de abril de 1904, a partir de Aix-en-Provence, ele recomenda a Bernard: “Trate a natureza pelo cilindro, a esfera e o cone… as linhas horizontais dão amplitude, as verticais profundidade…”. A instrução é mais que um conselho técnico e sintetiza a ideia de que o espaço deveria ser construído pela relação entre cor e volume, e não pelo contorno. É nesse ponto que surge o termo “modulação”, que Bernard mais tarde usaria para definir a capacidade de Cézanne de transformar cor em forma.
Essas cartas, preservadas e publicadas em coletâneas, mostram a inquietação intelectual do artista em seus últimos anos de vida, antecipando na escrita o que sua pintura consolidaria nas célebres séries da Montanha Sainte-Victoire, nas naturezas-mortas e nas paisagens finais. O diálogo com Bernard, que tinha pouco mais de 20 anos, sublinha ainda a dimensão geracional. Um pintor já idoso, próximo da morte, transmitindo em poucas linhas aquilo que se converteria no alicerce do cubismo e de toda a arte do século XX.
Mira Schendel e Max Bense
A partir de 1966, a artista Mira Schendel estabeleceu um diálogo intelectual com o filósofo alemão Max Bense, mediado por Haroldo de Campos. Essa troca permeia reflexões sobre semiótica, silêncio, linguagem e processo criativo, espelhadas em suas emblemáticas Monotipias — séries de impressões-linguagem que ocupam o limite entre texto e imagem.
Schendel viveu o deslocamento urbano e existencial, da prisão italiana durante a guerra ao exílio em São Paulo desde 1949. Em São Paulo, criou uma rede de interlocutores que incluía poetas, psicanalistas e críticos, conectando o pensamento moderno ao Brasil. Sua correspondência com Bense se insere no contexto da revista rot — uma série de periódicos que publicava poemas concretos, experimentos visuais e textos de semióticos como Bense, Haroldo de Campos e Ernst Jandl.
Lygia Pape e os diários-cartas para si mesma
Menos conhecidos que suas obras visuais, os escritos de Lygia Pape misturam diário e correspondência dirigida a um “outro” imaginário. Nesses cadernos, a artista registrava notas sobre luz, corpo e política, em paralelo a seus projetos plásticos, criando uma espécie de diálogo íntimo que se confunde com processo criativo.
Entre 1959 e 1963, Pape desenvolveu uma trilogia de livros-objeto que condensam essa dimensão sensorial e participativa: Livro da Criação (1959), Livro da Arquitetura (1959–60) e Livro do Tempo (1961–63). O Livro da Criação, por exemplo, é composto por 16 páginas destacáveis com gouache sobre papelão, projetadas para serem desdobradas pelo espectador. Cada fragmento forma estruturas tridimensionais originais e abre uma narrativa visual sem palavras, como um poema que se vivencia com as mãos. Pape escreveu que “a narrativa é percebida sensorialmente”, colocando o leitor como coautor da experiência.
Hoje, o Livro da Criação integra o acervo do MoMA e já foi exibido em instituições como o Museu Reina Sofía e em retrospectivas no Brasil e no exterior. Ao lado dos escritos diarísticos, ele evidencia uma prática que não se separa entre texto e imagem.
Marcel Duchamp e Katherine Dreier
Entre 1920 e 1950, Duchamp e Dreier cultivaram uma parceria epistolar que foi fundamental para a consolidação da arte moderna nos EUA. Dreier, colecionadora e artista, co-fundou com Duchamp e Man Ray a Société Anonyme. Eles trocaram cartas, manuscritos e notas sobre exposições, catálogos e a missão de promover artistas modernos. Em uma carta de 31 de janeiro de 1931, Dreier menciona a dificuldade financeira da organização, enquanto Duchamp envia sugestões curatoriais e nomes emergentes que deveriam ser incluídos nos programas.
Essa troca intelectual resultou em 80 exposições entre 1920 e 1940, apresentando nomes como Kandinsky, Mondrian e Klee. Em 1941, Dreier doou toda a coleção da Société à Yale University Art Gallery, garantindo a preservação e legitimidade institucional da arte moderna. O arquivo, hoje na Beinecke Library, inclui correspondência, diários de viagem e notas que documentam a estratégia visionária desse grupo pioneiro.
On Kawara e os postais e telegramas
Entre 1968 e 1979, On Kawara desenvolveu uma prática artística baseada em comunicação postal. Na série “I Got Up”, enviou dois postais por dia informando o horário exato em que acordou, assinados com “I GOT UP AT…” e contendo cidade, data e endereço do destinatário (cerca de 1.500 cartões). Paralelamente, sua série “I Am Still Alive”, iniciada em 1969, consistia em telegramas enviados com mensagens diretas como “I AM STILL ALIVE – DON’T WORRY”. Esses registros, mesmo rudimentares, são instrumentos de existência e temporalidade, em que cada destinatário se torna cúmplice, e cada envio, um ato performativo.
Ray Johnson e o mail art
Ray Johnson (1927–1995) foi o criador da New York Correspondence School, uma rede de contracultura que se espalhou pelo correio. Nos anos 1950, começou a enviar seus moticos — fragmentos colados, bilhetes curtos, instruções ou convites — a amigos e artistas. Em 1962, o crítico Ed Plunkett batizou esse movimento de “NYCS”, às vezes grafado como Correspondance de forma propositalmente errada.
Sua prática, definida pelo humor e pela performance, também encontrou espaço em instituições. Em 1970, o Whitney Museum organizou a primeira coletiva de mail art, e em 1976 o North Carolina Museum of Art apresentou uma mostra com 35 anos de sua correspondência. Após sua morte, em 1995, vieram à tona milhares de fotografias e colagens insólitas, vistas em exposições como Please Send to Real Life, na Morgan Library, que sublinharam o alcance enigmático de seu trabalho.
Eva Hesse e Sol LeWitt
Em 1965, Eva Hesse — em crise criativa e emocional — recebeu uma carta emblemática de Sol LeWitt: “Stop—thinking—and just DO!” Essa frase entrou para a história da arte como um empurrão direto à ação — e à própria materialidade da obra de Hesse. A correspondência entre eles, iniciada em 1960, revelou uma amizade radical de troca estética e existencial até a morte de Hesse em 1970, aos 34 anos, por um tumor cerebral. Seus diários, repletos de dúvidas, inseguranças, análises sobre materiais como látex e gaze, e notas íntimas, são artefatos essenciais para entender sua explosiva produção escultórica: quase um duelo íntimo entre pensamento e forma.

Anna Bella Geiger e os cadernos conceituais em papel
Entre 1974 e 1977, Anna Bella Geiger criou cerca de 20 caderninhos, pequenos livros feitos com Letraset, fotocópias, desenhos, textos e colagens, nos quais explorava temas como cultura brasileira, ideologias da arte e corpo. Ela via os cadernos como respostas à “impossibilidade de manter uma relação de artista com o sistema de arte”, servindo como ferramenta de investigação estética e crítica. E não só isso — Geiger misturava mecanismos didáticos e materiais visuais alternativos como fotocópias e adesivos, criando um espaço aberto de pensamento visual e político. Pioneira também em arte em vídeo no Brasil, sua experiência pedagógica e suas dúvidas geracionais encontram nesses cadernos um espaço-laboratório decisivo.
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