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Aline Midlej: “Há princípio que resista ao fim?”


Era 2023 e eu fazia minha primeira saída em meio ao puerpério, portanto, me sentia uma E.T bem-vestido em público. Mas a ocasião justificava. Um show desejado há décadas – não apenas por mim, por óbvio rs – acontecia, finalmente. Assistir Caetano Veloso cantar todo o repertório de Transa no palco já era um presente das deusas, mas quando ela subiu para um dueto que depois foi sucedido por uma interpretação visceral da sua célebre canção, eu compreendi imediatamente que havia testemunhado algo incomparável. Aquela letra, aquela voz, aquela entrega transparente e intensa.
Diante de mim estava uma das principais vozes do país, compositora de obras-primas do cancioneiro brasileiro, nome indissociável da revolução feminina da MPB no fim dos anos 1970. Angela Ro Ro foi rara por essa combinação incomum de imensa intérprete, imensa compositora, imensa personalidade.
Abriu caminho para a liberdade sexual de cantoras brasileiras ao assumir seus desejos, serviu letras que sacramentaram sucessos de grandes nomes como Maria Bethania e Marina Lima. Mas no seu caminho não cabiam regras vindas de fora. A liberdade pode ter seus custos à vista e a prazo, mas, ainda assim, parece haver algo de disfuncional quando olhamos alguns parâmetros. Uma reflexão sobre o valor que passa a ser atribuído a cada coisa.

Fato é que pouco mais de um ano depois daquele show inédito, a mesma Angela Ro Ro surgia solitária e sem dinheiro nas redes sociais pedindo ajuda aos seus fãs. Naquela altura já apresentava dificuldade de comunicação e coordenação motora. Sou tomada por uma emoção semelhante à que senti naquela noite do show do disco Transa, mas que vem da incompreensão de como alguém com esse talento e contribuição pra cultura brasileira termina a vida privada do básico? Somos resultado das escolhas que fazemos? Sim. Mas também somos parte de uma sociedade onde não fazemos tributos em vida, onde o valor, por vezes, não é perene como a matéria-prima que o origina.
As músicas de Angela Ro Ro que embalaram novelas e tantas histórias das nossas vidas têm valor inestimável e assim deveriam ter se mantido (valorizadas!). Na sua última turnê, em maio, o ingresso mais caro custava 150 reais. Um post de influencer vendendo jogos virtuais pode custar, hoje, um dinheiro que talvez Angela Ro Ro nunca tenha alcançado e nem alcançaria porque a liberdade custa um preço ainda mais alto para mulheres corajosamente livres para não serem o que determinado mercado espera delas.
A melancolia que marcou sua arte marcou sua morte. Uma grande estrela da nossa música foi velada num cemitério do Rio de Janeiro, merecia um palco maior. Mas a memória também tem valor inestimável. Podemos honrar, difundir e valorizar a vida sem ensaios calculados, cheia de liberdade e emoção de Angela Ro Ro. Escolhas ainda muito caras para a maioria de nós, mulheres.
Nota: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Vogue Brasil.
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