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Alice Diop transforma história da arte e a representação da mulher negra em filme-poema para a Miu Miu


A primeira imagem que se vê em “Fragments for Venus”, novo curta-metragem de Alice Diop, é a da famosa “Grande Odalisque”, de Ingres — o polêmico retrato de uma concubina pintado em 1814, hoje exibido nas consagradas galerias do [Museu do] Louvre. Em seguida, desfilam pela tela uma série de obras de mestres antigos — Leonardo da Vinci, Rembrandt, Veronese —, muitas delas facilmente reconhecíveis de museus ao redor do mundo. A câmera acompanha uma espectadora que caminha pelos corredores dessa misteriosa instituição. Em determinado momento, a atriz Kayije Kagame para diante de uma moldura vazia, como se sugerisse que, um dia, seu retrato também poderia estar ali.
“Fragmentos para Venus”
Brigitte Lacombe

Ainda mais marcante do que as obras-primas da história da arte que se sucedem na tela é o que se ouve: uma voz recita, em francês, uma tradução de “Voyage of the Sable Venus”, poderoso poema da escritora americana Robin Coste Lewis. Nele, a autora reúne — nas próprias palavras — “títulos, entradas de catálogos ou descrições de exposições de objetos de arte ocidental que retratam figuras femininas negras, datando de 38.000 a.C. até os dias de hoje”. De repente, a narrativa se transporta para o Brooklyn contemporâneo, onde uma mulher gentil e atenta observa, com encantamento e alegria, cenas do verão nova-iorquino: uma mulher jogando basquete, outra pintando ao ar livre no parque, outra ainda imersa em música no metrô.
Apresentado no Festival de Veneza como parte da prestigiada série “Women’s Tales”, da Miu Miu, o curta se revela um retrato comovente e contemplativo da identidade negra — especialmente da vivência de mulheres historicamente relegadas às margens da história da arte — e da História em sentido amplo. O filme carrega a mesma fusão de experiência pessoal e subtexto político que tornou Alice Diop uma das vozes mais potentes do cinema francês contemporâneo: primeiro, com uma série de documentários premiados sobre comunidades marginalizadas em Paris; depois, com sua notável estreia na ficção, “Saint Omer” (2022). O drama jurídico, baseado em um caso real envolvendo uma mulher senegalesa acusada de matar o próprio filho de 15 meses, venceu o Grande Prêmio do Júri em Veneza naquele ano e foi pré-selecionado ao Oscar de Melhor Filme Internacional.
“Fragmentos para Venus”
Brigitte Lacombe
Na véspera da estreia, encontramos Diop em seu hotel em Veneza, usando uma jaqueta bomber marrom da Miu Miu e brincos dourados esculturais. Ela fala com franqueza e afeto sobre o caráter profundamente pessoal de seu novo trabalho. “Muitas das mulheres envolvidas nessa série de filmes estão entre as artistas mais importantes e inspiradoras para mim”, diz, sorrindo, ao comentar sua entrada na prestigiosa lista da “Women’s Tales”. “Fiquei muito honrada com o convite.” Nesta conversa com a Vogue, Diop fala sobre a origem do filme, a fluidez entre documentário e ficção em sua obra, e como o processo de criação a levou a descobrir uma nova combinação entre o pessoal e o político.
Vogue: Conte um pouco sobre como esse projeto surgiu. Como foi sua primeira conexão com a Miu Miu, e o que te empolgou nele?
Alice Diop: Eu conheci a Verde Visconti [diretora de relações públicas de longa data da Prada e da Miu Miu] há cerca de dois anos, depois que [o filme] “Saint Omer” foi exibido aqui em Veneza, e ela me convidou para fazer parte da prestigiada equipe de cineastas do Women’s Tales. Muitas das mulheres envolvidas nessa série de filmes estão entre as artistas mais importantes e que mais me inspiraram. Fiquei muito honrada com o convite. Mas dois ou três anos atrás, eu ainda não tinha uma ideia precisa em mente. Para mim, um convite, por si só, não é suficiente. Preciso de uma necessidade criativa real para mobilizar a energia e o esforço que fazer um filme exige.
Quando a Verde voltou a me procurar — e quero prestar homenagem à sua perseverança —, foi exatamente o momento certo. Eu estava lecionando em Harvard, o que me dava tempo. Mas mais importante do que o tempo foi o fato de que eu havia descoberto o trabalho da poeta americana Robin Coste Lewis. Na verdade, estou adaptando o epílogo da coletânea de poemas dela, Voyage of the Sable Venus, para uma peça em Paris. E o trabalho que estava fazendo em torno da Robin me deu a ideia de dar uma forma cinematográfica a isso, de um jeito que se encaixasse perfeitamente nos requisitos da Miu Miu para essa série. Os astros se alinharam, e foi realmente um imenso prazer poder colaborar com eles nesse projeto.
Vogue: Como cineasta que já trabalhou tanto com documentários quanto com ficção, onde você posiciona esse filme dentro desse espectro?
Alice Diop: O filme não se posiciona exatamente. Ele ocupa um lugar próprio. É um filme que empresta materiais de muitos lugares. Tem uma parte completamente documental, mas também há uma construção muito política e filosófica com duas mulheres, uma delas dentro de um museu que representa a história da arte. Por um lado, é um museu específico, mas poderia ser qualquer museu. É uma ideia tão política e filosófica que vai além da distinção entre documentário e ficção.
Depois, há a segunda parte, que é baseada em uma experiência bastante íntima. Eu filmei a maioria das mulheres que aparecem, e depois coloquei a atriz Sephora para observá-las. Então o filme é uma mistura de ideias teóricas e filosóficas sobre essas mulheres encontradas nas ruas. O contraplano do olhar de Sephora é algo difícil de classificar. Acho que essa dificuldade de situá-lo entre ficção e documentário é justamente o que dá força ao filme.
“Fragmentos para Venus”
Brigitte Lacombe
Vogue: Foi lindo ver a Kayije Kagame, de Saint Omer, aparecer aqui. Ela se tornou uma espécie de musa para você? Você acredita nesse conceito de musa?
Alice Diop: Não! A Kayije odiaria a ideia de ser minha musa. [Risos.] Ela é poderosa demais para isso. É uma criadora por si só. Ela inventa coisas no modo como colabora comigo na criação das minhas imagens. Foi simplesmente um prazer trabalhar com ela novamente — assim como foi um imenso prazer conhecer a Sephora Pondi e trabalhar com ela também. Espero fazer outros filmes com a Sephora, assim como espero voltar a trabalhar com a Guslagie [Malanda, também de Saint Omer]. São encontros da vida. Não se trata apenas de interpretar um papel. São mulheres que me ajudam a pensar e a criar.
Vogue: A segunda metade do filme, ambientada em Nova York, parece quase um autorretrato — ou pelo menos semiautobiográfica —, baseada nas suas experiências na cidade e em Brooklyn. Você mencionou que ali se sentia à vontade nas ruas de uma maneira que não experimentava em Paris. Pode falar um pouco mais sobre essa sensação e como a trouxe para a tela?
Alice Diop: Mais uma vez, trata-se dessa distinção entre formas — documentário e ficção — e este filme surge de uma mistura dessas duas coisas. Ele vem de uma experiência muito específica de ser uma mulher negra caminhando pelas ruas de Nova York, de Brooklyn, e sentir que posso ocupar espaço. As mulheres ali me veem e me permitem ser vista, o que é bem diferente da França, onde a ideia de comunidade é frequentemente estigmatizada. Eu cresci com a ideia de me misturar à multidão, quase de desaparecer — essa ideia de me conformar a certas normas que tiveram um grande impacto sobre mim enquanto crescia na França.
Mas o filme também nasce de uma ideia mais ampla, expressa já no início, quando vemos de onde viemos em termos de história da arte — e como essa história marginalizou e fetichizou as mulheres negras. Hoje, essas mulheres são vistas por mim, cineasta, mas também por escultoras, fotógrafas, todas essas artistas que aparecem no meu moodboard [o filme termina com uma série de retratos de mulheres negras dos séculos XX e XXI, muitos deles feitos por artistas negras]. São artistas que estão contribuindo para reparar formas de representação estigmatizantes. Portanto, há uma parte do filme que vem da minha experiência pessoal, mas que se expande politicamente para mostrar onde estamos hoje em termos de representação — em contraste com a parte passada no museu.
Vogue: Você também descreveu o filme como uma espécie de álbum de recortes. Fiquei curiosa em saber como você pegou essa ideia — que é tão física, tão tátil — e a traduziu para o meio cinematográfico.
Alice Diop: Engraçado você perguntar, porque o título provisório do filme era Scrapbook for Venus. Era essa ideia de um caderno de anotações de uma cineasta em processo, uma compilação de todas as obras que me inspiram, que me fazem pensar, que me colocam em movimento. Gosto da ideia de que isso permanece ao longo do filme, mesmo que o título final não revele isso diretamente.
O filme é alimentado por tudo isso: pelas obras, pelos textos que descobri durante o tempo que passei nos Estados Unidos, pelas caminhadas que fiz por Bed-Stuy, no Brooklyn, pelos filmes que realizei antes. Por exemplo, há uma pintura do Leonardo da Vinci, La Belle Ferronnière, que influenciou muito a maneira como enquadrei cenas em Saint Omer. Também tem uma pintura do Rembrandt, uma das minhas imagens favoritas, que influenciou profundamente meu modo de filmar. Então, de certo modo, este filme é um colagem de todas essas imagens diferentes que me inspiraram.
Vogue: Como diretora, você tem um olhar maravilhoso para o figurino e seu poder como recurso narrativo. Como foi o processo de integrar as roupas da Miu Miu ao filme? Foi algo natural, ou houve algum desafio?
Alice Diop: Não foi um desafio de forma alguma. Para mim, a moda é algo sério. É uma questão política, estética, cultural — vestir a Sephora com essas roupas, uma mulher que não tem um corpo normativo; colocar a Kayije literalmente dentro de uma pintura, As Bodas de Caná, a partir do trabalho com os tons das roupas dela. Foi muito interessante olhar para o figurino da Kayije sob essa perspectiva. Essas são questões filosóficas e políticas, e brincar com os figurinos nesse sentido foi um prazer, não um desafio. Na verdade, isso está na raiz do filme como uma questão política. Questionar a beleza da roupa em um corpo como o da Sephora é, aos meus olhos, praticamente uma declaração política.
Vogue: Você está animada para exibir o filme em Veneza? Tem algo específico que espera que o público leve da experiência?
Alice Diop: Para mim, um filme não é uma mensagem. São pensamentos oferecidos na esperança de que as pessoas os apropriem e se sintam ampliadas, renovadas por eles. Este filme em particular parece simples, mas acho que é muito mais complexo. Certamente, é maior do que uma mensagem. Pessoalmente, quando li o texto da Robin Coste Lewis, ele me ajudou a repensar o que parecia óbvio. Me permitiu olhar para a história da arte ocidental de forma diferente da que me foi ensinada. Então, pegar essa ideia e dar a ela uma expressão cinematográfica da maneira mais poética possível — e na esperança de que isso tenha, de alguma forma, se infiltrado e permeado o filme… Espero que as pessoas consigam se aproximar da obra e levar dela algo semelhante ao que o texto da Robin me proporcionou.
Esta conversa foi editada e condensada.