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Darwin e seu (peculiar) interesse por minhocas


Depois de explorar o mundo e escrever A Origem das Espécies, o naturalista britânico Charles Darwin passou os últimos anos de vida entre experimentos caseiros e observações demoradas de organismos que, à primeira vista, pareceriam simples demais para um cientista de tal porte: as minhocas. Tendo formulado a teoria da seleção natural, Darwin agora se dedicava a testá-la em diferentes ambientes. O solo era um deles. Escavado, digerido e reconstruído por vermes, ele oferecia uma demonstração da ação lenta e acumulativa que molda o mundo natural.
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“As minhocas vêm cumprindo um papel mais importante na história do mundo do que a maioria das pessoas imaginaria num primeiro momento”, concluiu Darwin em A formação da terra vegetal pela ação das minhocas, com observações sobre seus hábitos, seu último livro, publicado em 1881 — um ano antes de sua morte — e agora lançado pela primeira vez em português. Editada pela Fósforo, a obra chegou ao Brasil em julho, e é resultado de décadas de investigação sobre esses animais invertebrados.
A curiosidade de Darwin pelas minhocas não era passageira. Começou em 1837, quando apresentou à comunidade científica um primeiro artigo sobre a formação do solo. Nos anos seguintes, manteve a atenção sobre o tema, com experimentos conduzidos no jardim, no escritório e até na sala de jantar. Vasos cheios de terra e vermes, folhas meticulosamente pesadas, testes com sons, luzes e diferentes tipos de alimento: nada parecia pequeno demais para ser observado.
Mais do que um interesse por um grupo específico de animais, o estudo das minhocas revela algo profundo não só sobre o modo de pensar de Darwin, mas também vislumbres sobre sua personalidade e sua prática como cientista. Ele acreditava que os grandes processos naturais — como a evolução — só podiam ser compreendidos a partir da ação acumulada de forças pequenas, quase invisíveis. As minhocas, nesse sentido, eram uma metáfora viva de sua própria teoria.
“O que mais me surpreendeu nesse livro é o quanto ele é engraçado. O quanto tem de bom humor e de uma humildade do Darwin, que já era um grande cientista, já tinha muito reconhecimento em vida naquele momento, e ainda está ali, agachado na terra, olhando para as criaturas que ninguém daria atenção”, resume a tradutora do livro, Sofia Nestrovski. em entrevista à GALILEU. “É uma postura humana que acho comovente.”
Prazer em fazer ciência
Essa combinação de rigor e leveza aparece nos experimentos. Darwin queria saber, por exemplo, se esses animais sem olhos, ouvidos ou cérebro desenvolvido reagiam a estímulos externos e faziam escolhas. Para isso, elaborava testes tão sérios quanto cômicos. “Ele chama a família dele para tocar piano para as minhocas para ver como elas reagem. Sopra fumaça de charuto nelas. Pesa o cocô”, conta Nestrovski. “Uma pessoa menos criativa não faria tantos experimentos quanto ele, e dá pra ver que ele está se divertindo. Tem muito prazer nessa ciência, muito gosto pela coisa.”
Entre suas observações, notou que elas preferiam certos tipos de folhas para cobrir a entrada de suas tocas, puxando-as por uma extremidade específica, como se considerassem o formato mais eficiente. Percebeu que eram sensíveis à luz, mas continuavam comendo mesmo sob claridade intensa. Reagiam a vibrações e tinham paladar rudimentar. Os testes, feitos com rigor doméstico, sugeriam que as minhocas não agiam apenas por instinto — havia nelas um grau de sensibilidade, de atenção.
Caricatura de Darwin feita por Edward Linley Sambourne em 1881, ano de publicação do livro sobre minhocas
Popular Science Monthly Volume 20/Wikimedia Commons
Darwin não chegou a afirmar que as minhocas eram inteligentes, mas insinuou que, para um animal tão “simples”, a capacidade de discriminar materiais, adaptar comportamentos e moldar o ambiente era notável. “Embora as minhocas sejam singularmente desprovidas de vários órgãos de percepção, isso não exclui de todo sua inteligência”, escreveu o naturalista. “Vimos também que, quando estão compenetradas em algo, ignoram coisas que, de outra maneira, lhes reclamariam a atenção; esse foco indica a presença de algum tipo de mente.”
Essas observações colocavam em xeque a ideia, comum à época, de que os grandes mamíferos representavam o ápice dos seres vivos. Segundo Pedro Paulo Pimenta, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), Darwin vai contra essa corrente. “Ele ignora isso, para estudar justamente o quê? Não tanto essa forma consolidada, mas como você sai de uma forma e chega na outra”, explica Pimenta, que estuda a intersecção entre filosofia, história natural e economia, e traduziu A Origem das Espécies. “Se a gente lê A Origem das Espécies, vê que ele quase não menciona grandes animais. O argumento dele é todo construído com base em observações de plantas e insetos.”
Ele quase não menciona grandes animais. O argumento é construído com observações de plantas e insetos”
No entendimento de Pimenta, a seleção natural não premia automaticamente as formas mais bem adaptadas, mas sim aquelas que, por acaso, se revelam mais aptas a sobreviver — ou seja, conseguir obter recursos e se reproduzir — em determinado ambiente. “É uma ideia bonita, complexa. E você não vai chegar nela fazendo exame de anatomia de elefantes ou dinossauros”, resume.
Terra animal
A ideia Darwinista de adaptação, segundo o professor da USP, torna o organismo inseparável do meio, e vice-versa. “Você pode ter uma forma altamente desenvolvida que não se dá bem num ambiente determinado, e portanto ela vai ser extinta”, explica.
Essa lógica ajuda a entender por que Darwin se voltou para animais como as minhocas — seres aparentemente simples, mas muito integrados ao ambiente. Ao observar seu comportamento e seu impacto sobre o solo, ele mostrava como a vida se transforma de baixo para cima, em interações lentas e contínuas entre organismo e meio. Não por acaso, sugeriu que o termo mais adequado para o solo talvez não fosse “terra vegetal”, mas “terra animal”.
Com base em suas observações, concluiu que praticamente toda a camada superficial da terra havia passado, em algum momento, pelo trato digestivo de minhocas. Estimativas feitas por ele sugeriam que mais de 15 toneladas de húmus por acre (medida que corresponde a 0,4 hectare, aproximadamente) eram processadas anualmente por esses animais. Esse seria um volume suficiente para enterrar ruínas arqueológicas, nivelar terrenos e transformar paisagens inteiras ao longo de séculos. “Ele percebe que é graças ao trabalho delas que as coisas na superfície da Terra são como são. É uma conclusão imensa. Se não fosse pelas minhocas, a vida não seria o que ela é”, afirma a tradutora.
Diagrama do canal alimentar de uma minhoca, feito pelo próprio Darwin
Ray Lancester/WikiMedia Commons
O professor da USP considera o raciocínio coerente com a própria teoria da seleção natural. Ao mostrar que a adaptação de um organismo depende de sua interação com o ambiente, Darwin dilui a fronteira entre o ser vivo e o meio. Um só faz sentido em relação ao outro. O solo, nesse sentido, não é só cenário, mas consequência. O que Darwin propõe não é uma visão holística da natureza no sentido místico ou harmônico, mas a ideia de que a natureza é um sistema dinâmico, em equilíbrio instável, que se transforma a partir de forças internas, sem finalidade nem propósito.
“Ele põe para pensar que uma coisa que você está acostumado a tratar como inerte e morta é dinâmica e viva. E que um animal que você certamente vai considerar inferior está, na verdade, produzindo uma coisa sem a qual a sua existência não poderia se consolidar”, aponta Pimenta. “O Darwin tem um pouco esse efeito de ter uma lucidez que a gente não costuma ter, porque ficamos presos nessa coisa das grandes formas, dos animais superiores, do homem.”
A primeira impressão que tive quando comecei a ler era que esse livro era uma espécie de reflexão do Darwin sobre a morte”
A reflexão sobre a passagem do tempo
Com um olhar mais filosófico, o professor da USP considera interessante a forma como Darwin faz os leitores pensarem no efeito do tempo. Para ele, o mais genial em A formação da terra vegetal é a atenção aos microprocessos — acontecimentos pequenos, sem plano nem intenção, que operam lentamente e ainda assim sustentam o mundo.
Essa abordagem está alinhada com a defesa de Darwin do chamado uniformitarismo: a ideia de que mudanças graduais, e não rupturas, moldam o que somos. Ainda assim, Darwin reconhecia que, na escala geológica, até transformações que nos parecem lentas — como a formação de camadas de solo — podem ocorrer de forma abrupta. Tudo depende do ponto de vista. Dez mil anos, para uma minhoca, parecem uma eternidade. Para a história da Terra, são um piscar de olhos.
Para Nestrovski, o livro também provoca uma reflexão sobre a passagem do tempo na escala humana. “A primeira impressão que tive quando comecei a ler era que esse livro era uma espécie de reflexão do Darwin sobre a morte”, afirma. Enquanto escrevia, o cientista estava com 72 anos e doente, cercado de perdas e da consciência da própria finitude.
Na visão da tradutora, ainda que não diga isso expressamente, ele parece encarar a própria mortalidade como um naturalista: agachado na terra, observando o trabalho contínuo das minhocas. Ao mostrar como pequenas ações acumuladas moldam o mundo ao longo de milênios, o livro nos faz pensar sobre o nosso tempo — e sobre o que deixamos depois dele.