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Brasil envenenado: por que casos de intoxicação têm aumentado no país?


Na antevéspera do Natal de 2024, uma reunião de família em Torres (RS), terminou em tragédia. Após comerem o tradicional bolo de Reis, preparado pela aposentada Zeli dos Anjos, de 61 anos, seis familiares foram para o hospital com sintomas intensos de intoxicação. Tatiana, sobrinha de Zeli, morreu no mesmo dia. Depois, as irmãs Neuza e Maida também morreram. A explicação veio no Natal. Exames de laboratório confirmaram que a família foi envenenada com um dos cinco elementos químicos mais letais do mundo: o arsênio.
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O arsênio é liberado na forma de gás por atividades como mineração, pulverização de agrotóxicos e queima de carvão, mas também está presente na natureza, como em erupções vulcânicas. Seu composto industrial mais conhecido, o trióxido de arsênio (As2O3), é um pó branco, inodoro e sem gosto. Segundo a Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul, a farinha usada no bolo apresentava 65 gramas da substância por quilograma — uma concentração 2,7 mil vezes acima do nível natural para esse tipo de alimento.
A principal suspeita do envenenamento era Deise Moura dos Anjos, nora de Zeli. As investigações apontam que o plano começou meses antes. Em setembro de 2024, Deise levou leite em pó à casa dos sogros. Após consumirem a bebida, ambos passaram mal e precisaram de atendimento. O que parecia um episódio isolado revelou-se parte de uma sequência premeditada: exames comprovaram a presença do veneno tanto na farinha quanto no leite. Após anos afastada da família, Deise se reaproximou dos parentes apenas para executar o crime.
A exumação do corpo do sogro, Paulo Luiz dos Anjos, morto pouco depois do episódio com o leite, revelou uma “dose altíssima” de arsênio, segundo o Instituto-Geral de Perícias (IGP). Inicialmente, a morte foi atribuída a uma intoxicação alimentar. Só mais tarde um laudo indicou se tratar de uma intoxicação exógena — quando a exposição a uma substância tóxica provoca sintomas graves, e alterações em exames que podem levar à morte.
Foi graças às evidências deixadas nos corpos das vítimas que Deise foi presa, em 5 de janeiro deste ano, acusada de triplo homicídio e tentativa de homicídio. Passou um mês no Presídio Feminino de Torres e foi transferida para a Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba. Em 13 de fevereiro, foi encontrada morta em sua cela, com sinais de suicídio. No dia anterior, seu marido havia pedido o divórcio.
A repercussão de episódios de envenenamento nos últimos meses motivou uma ação do Conselho Federal de Química (CFQ). Em junho, o órgão anunciou que intensificou a fiscalização junto aos conselhos regionais e suas parcerias com Polícia Federal, Ibama e Anvisa. Em Campo Grande (MS), vereadores aprovaram uma lei que proíbe a venda de produtos com arsênio, exceto para fins científicos ou industriais sob controle técnico e sanitário.
Pó que mata
Após o episódio em Torres ganhar grande destaque na imprensa, a Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox) também se posicionou, emitindo um alerta técnico sobre os riscos do arsênio. O documento ressalta que, embora entre 30% e 40% da substância seja eliminada pela urina, o restante pode se acumular por meses em tecidos, como ossos, pele, unhas e músculos.
“Devido à alta toxicidade, muitos países implementaram regulamentações rigorosas sobre a fabricação e venda de compostos de arsênio. No Brasil, sua comercialização não é considerada proibida”, alerta a nota. “A aquisição do mesmo é possível facilmente por meio de plataformas online, permitindo a entrega domiciliar, o que representa um desafio à saúde pública”.
Meses depois, o arsênio fez outra vítima: a jovem Ana Luíza de Oliveira, de 17 anos, que morreu em junho, em Itapecerica da Serra (SP), após ingerir um bolo de pote envenenado. O caso prova um dos motivos que tornam a substância um veneno cada vez mais usado: sua facilidade de acesso. O arsênio foi comprado pela internet por R$ 80, e o bolo foi entregue por um motoboy de aplicativo pelo preço de R$ 5, a pedido de outra jovem que confessou o crime.
“Depois daquele caso [do bolo de Reis], como houve outros, ficamos em alerta”, diz a diretora da SBTox, a farmacêutica Flávia Neri, doutora em Ciências da Saúde. Mas o que explica a alta no número de casos? Há duas possibilidades, segundo Neri. “Nós não sabemos dizer se os laboratórios que identificam essas substâncias melhoraram ou se o aumento [desintoxicações] se deu por conta das pessoas verem essas notícias”.
Além de ter ficado marcado por casos de envenenamento com grande repercussão midiática, o ano de 2024 consolidou uma alta considerável do número de casos no Brasil. Entre 2020 e 2024, o número de intoxicações exógenas notificadas pelo SUS (Sistema Único de Saúde) cresceu quase 62%, saltando de 145,5 mil para 235,6 mil, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
“Costumo dizer que a perícia é a última voz da vítima. Ela conta o que aconteceu antes de a pessoa perder a vida”
Só entre janeiro e maio de 2025, foram registrados 51,4 mil casos de intoxicação. A maioria dos pacientes se recuperou totalmente (37,8 mil), mas houve 783 casos com sequelas e 296 mortes. As principais vítimas foram mulheres entre 20 e 39 anos. As causas mais frequentes foram tentativas de suicídio (quase 25 mil casos) e intoxicações acidentais (8,1 mil), com medicamentos e drogas de abuso liderando as ocorrências.
No entanto, especialistas acreditam que o número seja ainda maior: a estimativa é que ocorram cerca de 3 milhões de casos por ano no país, de acordo com o Centro de Informações Antiveneno da Bahia (CIAVE). Os dados tão discrepantes têm uma razão de ser: intoxicações são algo difícil de se diagnosticar. Isso pode fazer as vítimas receberem diagnósticos equivocados, diminuindo o tamanho aparente do problema no Brasil.
Como reconhecer uma intoxicação
Intoxicações por arsênio e outras substâncias tóxicas são facilmente confundidas com mal-estar alimentar. Mas a principal diferença é que substâncias químicas não costumam causar febre e podem provocar sintomas como sudorese, insuficiência respiratória e aumento da frequência cardíaca. “Há sinais parecidos com os de uma intoxicação alimentar, como vômito, sonolência e desidratação. Mas também pode haver confusão mental ligada ao efeito de certas substâncias no cérebro”, explica Flávia Neri. Outros sintomas comuns envolvem o surgimento de lesões na boca e nariz, salivação excessiva, desmaios, convulsões e dificuldade para respirar.
Além dos sintomas, há outro ponto importante nessa conta. Como destaca Ione Cristina de Paiva Pereira, perita criminal da Perícia Oficial do Maranhão e uma das organizadoras do livro As Ciências Forenses nos Casos de Envenenamento (Millennium, 2024), a grande maioria dos venenos não deixa marcas aparente no corpo após a morte. Em situações raras, porém, podem ser percebidas manchas nas unhas ou na pele, mudanças na cor do vômito e até um cheiro característico de amêndoas (como é o caso do cianeto).
Boa parte dos venenos muito usados para intoxicações criminosas, no entanto, são feitos para não deixar rastros. Várias substâncias sequer têm cheiro, cor ou gosto. O recém-popularizado arsênio, por exemplo, ainda que tenha a cor branca, é um pó inodoro e sem sabor. Já o cianeto, identíficavel por seu cheiro forte de amêndoas, é incolor.
Outros venenos também apresentam essas características furtivas. O tálio, por exemplo, — um metal pesado já usado em pesticidas e citado no livro O Cavalo Pálido, de Agatha Christie (1961) — é incolor, inodoro e sem sabor quando dissolvido, tornando-se praticamente imperceptível. O etileno glicol, presente em anticongelantes, tem sabor adocicado, mas também não tem cor ou cheiro. Substâncias como o metanol, com aparência e sabor de álcool, e até mesmo o clorofórmio, com seu gosto levemente doce, completam a lista de compostos difíceis de perceber a olho nu, mas com alto potencial tóxico.
Se essas características facilitam os crimes, elas dificultam a análise das vítimas. “É muito difícil e peculiar a gente conseguir detectar a olho nu que ali há um veneno”, diz o perito forense Guilherme Lima, que presta serviço para a empresa Secrim e é pós-graduado em química ambiental e forense.
Lima foi um dos profissionais envolvidos no processo de contra-perícia no caso do bolo de Torres, a pedido da defesa de Deise, nora da mulher que fez o bolo. Com a morte da suspeita, porém, o processo foi arquivado. “A perícia não envolve somente uma fatiazinha do bolo”, ele diz. “Ela vai determinar a dinâmica dos fatos — como aconteceu, quem consumou, por quê, quais as desavenças dessa pessoa. Costumo dizer que a perícia é a última voz da vítima. Ela conta o que aconteceu antes de ela perder a vida”.
Brasil envenenado
Ilustração: Vitor Luiz/ Design: Flavia Hashimoto
Como venenos intoxicam o corpo
Parte do processo de perícia envolve entender como diferentes substâncias agem no organismo. O cianeto de potássio, por exemplo, rouba o oxigênio das hemoglobinas, proteínas presentes nos glóbulos vermelhos do sangue. O resultado é uma morte por asfixia. “A vítima acaba com uma pigmentação da pele diferenciada, azul ou roxa, porque asfixiou”, explica Lima. Já a toxicidade depende de fatores como dose, frequência e via de exposição. A ciência sabe quais são as doses letais para humanos — não as compartilharemos aqui, exatamente para não motivar novos casos.
Para a análise toxicológica, são coletados vestígios em materiais biológicos — sangue, urina, cabelo, ossos, bile — e órgãos, como fígado e cérebro. O sangue é a matriz mais comum, mas o cérebro é especialmente útil para identificar substâncias psicotrópicas, que são as que atuam no sistema nervoso, como benzodiazepínicos e opioides.
O tempo de ação das substâncias pode variar bastante. As drogas psicotrópicas, usadas no brigadeirão que matou o empresário Luiz Marcelo Ormond, no Rio de Janeiro (RJ), por exemplo, podem demorar até uma hora para fazerem efeito. Já os envenenamentos crônicos, como o cometido pela ex-deputada Flordelis, que adicionava pequenas doses de arsênio na comida do marido durante anos, causam exposição prolongada e sintomas sutis. Embora difíceis de detectar, são menos frequentes — a maioria dos envenenadores opta por ações rápidas e letais.
Curiosamente, bolos, brigadeiros e ovos de Páscoa têm sido usados com frequência em casos recentes de envenenamento criminoso no Brasil. Para a perita Ione Cristina, a preferência por usar alimentos do tipo para mascarar venenos não é coincidência. “Me parece mais um efeito manada: quando a pessoa já tem vontade de cometer um envenenamento e reproduz algo que foi feito de forma semelhante”, diz. Ela destaca que doces com granulados ajudam a disfarçar o sabor e a textura de substâncias sólidas, como o “chumbinho”– composto cinza-escuro que não contém chumbo, e é uma mistura de praguicidas capaz de intoxicar uma hora após a ingestão. Mesmo com a preferência por doces, a polícia já encontrou casos de envenenamento envolvendo bebidas, como café, vinho e leite.
O problema é que, muitas substâncias perigosas, apesar de ilegais, continuam a ser vendidas clandestinamente no Brasil. É o caso do próprio “chumbinho”. Proibido pela Anvisa desde 2012, ele é vendido ilegalmente como raticida, mesmo sem ter eficácia comprovada contra roedores. Outros contaminantes, como o inseticida carbofurano e o paraquate, agrotóxico associado à doença de Parkinson, também são comercializados de maneira ilegal.
“Essas substâncias continuam circulando no país, à nossa revelia. Não só para serem usadas em crimes por envenenamento, mas também para serem adicionadas em alimentos”, diz Ione. Durante a Conferência Internacional de Ciências Forenses em Curitiba (PR), que acontece entre 25 a 28 de agosto, a perita pretende lançar um novo livro sobre o tema, Pesticidas: dos impactos ambientais aos envenenamentos (Editora Millennium).
A mente de um envenenador
O envenenamento é uma forma de assassinato que existe há milênios. Prova disso é que a antiguidade está repleta de casos de intoxicações fatais. Por volta de 183 a.C., o general cartaginês Aníbal ingeriu veneno para evitar sua captura por inimigos. Séculos depois, Sócrates foi condenado a beber cicuta, e Cleópatra teria tirado a própria vida com uma mistura de cicuta, acônito e ópio. Já o imperador romano Nero recorria à envenenadora Lacusta para eliminar adversários, pedindo preparo de misturas tóxicas sob medida. “O veneno foi um recurso utilizado para derrubar reis, imperadores, Papas, muitas vezes, em casos envolvendo ciúmes”, afirma Ione. “Psicopatas muito famosos utilizaram o recurso do envenenamento, que antigamente era muito mais frequente porque não havia métodos laboratoriais que fizessem essa identificação”.
A especialista explica que nem todo psicopata é um envenenador, mas todo envenenador costuma apresentar traços de psicopatia. É o caso da serial–killer britânica Mary Ann Cotton, acusada no século 19 de usar arsênio para matar mais de 20 pessoas, incluindo seus próprios filhos e ex-maridos.
Também no século 19, Mathieu-Joseph-Bonaventure Orfila, considerado o pai da toxicologia, publicou o Tratado dos Venenos, no qual ele introduz métodos inovadores para detectar e quantificar vestígios de arsênio, cianeto, antimônio e morfina. Na época, a Europa e os Estados Unidos sofriam uma epidemia de envenenamentos. Ela era causada por uma soma de motivos: pobreza, ganância, ressentimento e facilidade de acesso na agricultura e indústria. Enquanto os incidentes americanos envolviam fósforo, raticidas e calmantes, os europeus – em especial, os ingleses – matavam com rodenticidas, que continham muitas vezes arsênio, estricnina e fósforo na fórmula. Enquanto isso, no Brasil, na Vila de Itu, escravizados ingeriam venenos como forma de cometer suicídio. Historiadores debatem até hoje se isso ocorria por desespero ou como forma de protesto contra as condições terríveis em que viviam.
Corta para o século 20. Em 1982, sete pessoas morreram em Chicago após ingerirem cápsulas de Tylenol adulteradas com cianeto. O principal suspeito, James Lewis, foi preso por tentativa de extorsão, mas nunca foi formalmente acusado pelos homicídios, que permanecem sem solução. O caso levou a uma revolução na segurança das embalagens farmacêuticas e foi relembrado na série documental Caso Arquivado: Os Assassinatos do Tylenol, lançada em maio pela Netflix.
Ione aponta uma característica comum entre envenenadores: a existência de um empecilho que se deseja eliminar a qualquer custo. Uma herança e problemas financeiros teriam motivado o médico Luiz Garnica e a mãe, Elizabete Arrabaça, a envenenarem a irmã dele e depois a esposa em Ribeirão Preto (SP), em maio deste ano. Já os ciúmes teria levado, por exemplo, Jordélia Pereira a envenenar um ovo de Páscoa em Imperatriz (MA) com “chumbinho” em junho, na intenção de matar a atual namorada do ex-marido.
Para a perita, envenenamentos raramente são atos impulsivos. “Ninguém recorre ao envenenamento da noite para o dia”, diz. Além disso, diz ser comum que os envenenadores sejam reincidentes. “No geral, os envenenadores usam esse recurso mais de uma vez durante a vida”.
Justamente por se tratar de um crime premeditado, o assassino pode tentar apagar eventuais vestígios e simular uma morte por causa natural. Para que nenhum detalhe passe despercebido, a perícia analisa não só o corpo da vítima, mas também lixeiras, gavetas, celulares, bilhetes, testamentos, disputas judiciais e sinais físicos como vômitos, manchas e secreções.
Brasil envenenado
Ilustração: Vitor Luiz/ Design: Flavia Hashimoto; Ministério da Saúde/SVSA – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net
Na cultura popular, o veneno ainda carrega estereótipos. No filme Perseguição a Argel (1945), o detetive Sherlock Holmes, interpretado por Basil Rathbone, sentencia: “O veneno é a arma da mulher”. A frase, marcada pelo viés de gênero, não se sustenta nos dados. Uma reportagem do The Washington Post levantou registros do FBI, entre 1999 e 2012 — os mais recentes disponíveis — e concluiu que homens dos Estados Unidos cometem 90% dos assassinatos, a maioria deles com armas de fogo. As mulheres assassinas também optam em primeiro lugar pelas armas de calibre, seguido pelo uso de facas ou objetos contundentes. O veneno só aparece na sexta opção.
Por outro lado, as mulheres cometem mais suicídios por envenenamento do que os homens. Uma pesquisa do Ministério da Saúde com dados de 2007 a 2017 estima que, a cada 10 pessoas que tentaram morrer se intoxicando, 7 são mulheres. Outro estudo, feito com 117 pacientes hospitalizados após tentativas de suicídio em Roma, na Itália, mostrou que elas eram mais sujeitas a cometer autoenvenenamento do que homens, e a escolherem métodos menos letais de tirar a própria vida.
Epidemia de intoxicações
Embora os casos de envenenamento criminoso ganhem mais atenção na imprensa, a maioria das intoxicações no Brasil está ligada a acidentes ou tentativas de suicídio com medicamentos comuns, e não a crimes. É isso que mostra um levantamento inédito feito pela GALILEU, que contatou os 32 Centros de Informação e Assistência Toxicológica (Ciats) distribuídos em 20 estados brasileiros.
Em São Paulo, cidade mais populosa do país, foram mais de 7 mil intoxicações só entre janeiro e junho de 2025, com 56 mortes. “As drogas de abuso afetam uma faixa etária que vai de 12 a 50 anos. Já os casos envolvendo medicamentos estão fortemente ligados a tentativas de suicídio, acidentes e, em menor escala, à automedicação”, explica o enfermeiro Alexandre Dias Zuculoto, Coordenador Municipal de Intoxicações da Coordenadoria de Vigilância em Saúde (COVISA).
Brasil envenenado
Ilustração: Vitor Luiz/ Design: Flavia Hashimoto; Ministério da Saúde/SVSA – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net
O padrão se repete em outras partes do país. O Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) de Florianópolis (SC) fez 28,2 mil atendimentos em 2024 que tiveram medicamentos como principal agente tóxico. Em Salvador (BA), foram 13,2 mil notificações no mesmo período, com medicamentos e drogas de abuso no topo da lista de causas. Por lá, a principal circunstância foi a tentativa de suicídio, seguida por exposições acidentais a substâncias perigosas.
Goiânia (GO) soma 8.115 casos de intoxicação em 2024, sendo mais da metade associados ao uso de medicamentos. No CIATox de Recife (PE), que registrou 3.797 casos, e no de Belém (PA), com 1.007 casos, o cenário foi semelhante. Nessas regiões, remédios lideraram os registros, junto a ataques de animais peçonhentos.
A farmacêutica Flávia Neri, diretora do SBTox que atua no CIATox do Distrito Federal (DF), atribui a elevada incidência de intoxicações relacionadas ao uso de remédios no Brasil não só ao maior consumo e prescrição. De novo, também a facilidade de acesso sem receita médica e a comercialização ilegal, muitas vezes via deep web, também fazem crescer os números. “Há medicamentos que vieram de outros países de forma ilegal, mas que tem rótulo, caixinha e são parecidos com o medicamento real. Também temos medicamentos [legalizados] que passaram pelo controle de qualidade [causando intoxicações]”, cita.
“Antes era um atendimento na semana ou a cada 15 dias; atualmente, acontece todos os dias. Isso é impactante”
Brasil envenenado
Ilustração: Vitor Luiz/Design: Flavia Hashimoto
O que mais preocupa a especialista é o avanço das intoxicações por remédios entre jovens e pré-adolescentes, especialmente após a pandemia de Covid-19. Segundo ela, o fenômeno está diretamente relacionado ao aumento das tentativas de suicídio nessa faixa etária em várias regiões brasileiras. Dados de 2024 do CIATox de Santa Catarina, por exemplo, mostram que atos contra a própria vida representaram 34,29% dos atendimentos de crianças de 10 a 14 anos e 54,40% relacionados a jovens entre 15 e 19 anos.
“Nós atendemos casos de crianças de 9, 10 anos [que tentaram suicídio]”, diz Neri. “Antes era um atendimento na semana ou a cada 15 dias; atualmente, acontece todos os dias. Isso é impactante”. Entre crianças menores, predominam os acidentes domésticos. Só em 2024, o CIATox do Hospital das Clínicas (HCFMUSP), que funciona no Instituto da Criança e do Adolescente (ICr), registrou mais de 4,8 mil intoxicações acidentais em pacientes de 0 a 9 anos. A maioria foi causada por medicamentos, seguida por cosméticos e produtos de limpeza — como detergentes, desinfetantes e alvejantes. As principais circunstâncias foram exposição acidental, erro na dose e troca de embalagem dos remédios.
A ciência já tem maneiras eficazes de combater vários tipos de intoxicação, com o uso de antídotos ou antagonistas. Os antídotos neutralizam o efeito tóxico de um toxicante — seja o veneno de animais peçonhentos, metais tóxicos, agrotóxicos ou medicamentos —, enquanto os antagonistas bloqueiam receptores. É o caso, por exemplo, do flumazenil, antagonista da sedação e depressão respiratória do clonazepam, popularmente conhecido como rivotril.
Neri relembra dois casos marcantes que sua equipe tratou usando antídotos: o de uma bebê que ingeriu limpa-prata com cianeto e ficou com a pele azul-arroxeada (devido à falta de oxigênio no sangue) e o do estudante de veterinária Pedro Henrique Santos Krambeck Lehmkul, que entrou em coma após ser picado, em julho de 2020, por uma cobra naja, uma das mais venenosas do mundo.
A diferença está na dose?
O soro antiofídico que salvou a vida de Pedro veio do Instituto Butantan, em São Paulo, maior produtor nacional de soros antiveneno. Os estudos do Butantan ajudam a provar a clássica frase “a diferença entre o remédio e o veneno está na dose”, dita pelo médico e físico suíço-alemão Paracelso no século 16.
Pesquisadores da instituição já identificaram proteínas com potencial de combater doenças degenerativas no veneno de taturana; também descobriram uma molécula no veneno do peixe niquim (Thalassophryne nattereri) que pode ser aliada no tratamento da asma. E detectaram também uma proteína do veneno da cascavel com ação anti-inflamatória e antitumoral.
O veneno de cobra, aliás, tem grande potencial farmacológico, contribuindo para a produção de antivenenos e medicamentos usados no tratamento de doenças que vão do câncer à insuficiência cardíaca. Devido às mudanças climáticas, o mundo enfrenta uma escassez de antídotos contra as picadas de cobras, segundo a OMS alertou em 2024. Ao todo, a distribuição de 209 espécies de cobras pode mudar até 2070 devido à crise no clima, atrapalhando a produção desses fármacos, segundo uma pesquisa publicada no ano passado na revista The Lancet Planetary.
Mais recentemente, em março de 2025, a SBTox publicou um documento com novas diretrizes de indicações, uso e estoque de vários tipos de antídotos, reunindo informações sobre formas farmacêuticas, principais indicações, mecanismos de ação e doses recomendadas. “Ficamos felizes com o resultado [dos novos protocolos], porque a gente precisa facilitar que todos esses antídotos estejam espalhados por todo o país, que estejam acessíveis”, diz a diretora da instituição.
Ainda assim, profissionais reforçam que a prevenção continua sendo o melhor “antídoto”. É crucial manter produtos químicos, venenos e medicamentos em locais trancados, altos e fora do alcance das crianças. Evitar o consumo de alimentos ou bebidas de origem duvidosa, não fazer misturas artesanais de produtos de limpeza em casa ou remover produtos químicos da embalagem original também são formas importantes de prevenção.
Mas, se mesmo com todos os cuidados uma intoxicação ocorrer, é importante saber como agir. O primeiro passo é identificar qual foi o produto envolvido e, se possível, a quantidade a qual a vítima foi exposta. “Jamais tente provocar vômito nem ofereça algum líquido como água ou leite”, recomenda Cristina Andrusaitis Sandron, farmacêutica, coordenadora do CIATox do HCFMUSP. “Na maioria dos casos, essas condutas podem agravar a intoxicação, espalhando mais a substância dentro do organismo. Além do risco de broncoaspiração do produto, no caso de se provocar o vômito”.
Caso o veneno tenha entrado em contato com a pele ou os olhos, a orientação é lavar a área afetada com água e retirar imediatamente qualquer roupa contaminada. E em seguida, ligar para o disque-intoxicação da Anvisa, disponível 24 horas no número 0800-722-6001. A ligação é gratuita, e será encaminhada ao centro de intoxicações mais próximo, que pode orientar tanto o público quanto profissionais de saúde sobre os primeiros cuidados e avaliar se há necessidade de encaminhamento ao hospital.
Se for necessário buscar um serviço de saúde, é fundamental trazer também a embalagem, o rótulo ou a bula do produto que provocou a intoxicação. Essas informações ajudam a revelar a substância e a definir o tratamento mais adequado. “A gente tem como missão evitar que as pessoas procurem os serviços de saúde de forma desnecessária”, explica Alexandre Dias Zuculoto, coordenador da COVISA. “A maior parte das exposições não gera sintomas ou causa apenas efeitos leves. Apenas uma pequena parcela evolui com maior gravidade. Por isso, conseguimos resolver muitos casos de intoxicação no próprio ambiente doméstico”.
O combate às intoxicações parte também de uma fiscalização mais rigorosa à venda de substâncias perigosas por parte das autoridades de saúde. A população pode fazer sua parte: cidadãos que se depararem com o comércio ilegal de veneno podem denunciar a prática aos órgãos de defesa do consumidor (151 – PROCON) e vigilância sanitária da sua cidade. “Você não pode pensar ‘isso não é problema meu’, é problema nosso”, destaca a perita Ione Cristina. “Aquele veneno não vai ser usado para coisa boa. A sociedade toda tem que estar envolvida nesse processo”.