Michel Alcoforado tem uma habilidade rara: ele fala de desigualdade social como quem conta uma boa história. Com humor mordaz, repertório robusto e uma dose bem calibrada de ironia, o antropólogo carioca se aprofunda no universo da elite brasileira em Coisa de Rico (Todavia), livro recém-lançado que analisa os códigos de comportamento dos endinheirados do país — e revela, entre outras coisas, que no Brasil, ninguém se reconhece como rico. Afinal, como ele mesmo diz, “os ricos são sempre os outros”.
Em entrevista à Vogue, Michel fala com a mesma língua afiada da sua escrita. Em um papo tão divertido quanto revelador, ele desmonta as lógicas por trás da ostentação, explica como “gosto virou coisa” e detalha as diferentes formas de performar a riqueza no Brasil. “No Brasil, a gente trata conhecimento como coisa. O fulano estudou na USP (Universidade de São Paulo), ele não está só dizendo que estudou na USP — ele usa isso como se fosse uma bolsa”, afirma.
Segundo ele, o jogo da ostentação é regra, mas muda de acordo com o público: “Todo rico ostenta — seja ele tradicional ou emergente. A diferença é que ostentam coisas diferentes para grupos diferentes”. Enquanto os novos ricos “pululam de logos” e exibem Chanel, Rolex e Porsche como forma de validação social mais ampla, os tradicionais “sussurram a riqueza para quem importa”, apostando em grifes silenciosas, como Loro Piana e sapatos discretíssimos que só outro iniciado reconhece.
Nas redes sociais, a lógica se intensifica. “O principal ativo da rede social é que agora todo mundo sabe o que é coisa de rico — até quem nunca vai comprar. Isso acirra dois sentimentos centrais na sociedade brasileira: o medo e a inveja”, afirma. Seja você parte do jet-set ou um mero voyeur das elites, Coisa de Rico ajuda a entender por que, no Brasil, todo mundo está desesperado para parecer mais rico do que é — e por que essa encenação constante ajuda a perpetuar, com verniz de sofisticação, algumas das desigualdades mais brutais do mundo. Confira o bate-papo abaixo:
Vogue: Você diz que os ricos brasileiros não são cegos à desigualdade. Eles até se comovem com a pobreza. Mas isso não significa que reconheçam sua própria posição de privilégio. Por quê?
Michel Alcoforado: Porque, para eles, ser rico é sempre alguém que tem mais do que você. Eles olham para a própria vida e reconhecem que têm privilégios, sim. Mas acham que têm “o que precisam”. Não conseguem enxergar que, na verdade, têm mais do que precisam. E isso acontece porque o parâmetro nunca é a base da pirâmide. É sempre quem está acima. O vizinho da cobertura tem o dobro do apartamento, o carro blindado, casa em Paris, segurança privada… “Esse sim é rico”, pensam. “Eu só tenho uma vida boa.”
Vogue: E esse “ser rico” não é só sobre ter dinheiro, certo? Você fala sobre códigos de comportamento, consumo, linguagem…
Michel Alcoforado: Exatamente. A montanha de dinheiro é só um pedaço da equação. O dinheiro, por si só, não basta. É preciso usar esse dinheiro para construir uma narrativa de pertencimento. E aí entram os códigos: os objetos, os gostos, os diplomas, os amigos. No Brasil, tudo isso vira “coisa”. O diploma na parede, o arquiteto famoso que assina a casa, a marca da roupa, o sobrenome do decorador… Tudo é tratado como símbolo de distinção, de status. O conhecimento, inclusive, é uma “coisa” — tão valiosa quanto uma bolsa ou um relógio.
Vogue: E a ostentação? Ainda é explícita ou mudou de forma?
Michel Alcoforado: Mudou na forma, mas não na essência. Todo rico brasileiro ostenta — seja ele tradicional ou novo-rico. A diferença é para quem ele ostenta. O novo-rico precisa ser reconhecido por muita gente, então aposta no óbvio: logo grande, marca gritada, carro esportivo, Rolex. Já o rico tradicional ostenta para os seus. Prefere o cashmere europeu sem etiqueta aparente, o sapato discreto, mas caríssimo. É uma ostentação que sussurra para quem entende e ignora o resto.
Vogue: Qual o papel das redes sociais nisso tudo?
Michel Alcoforado: As redes sociais são o inferno (risos). Antes, para saber qual era o novo modelo da Louis Vuitton, você precisava ir até Paris. Hoje, qualquer um com um celular sabe. Isso tornou tudo mais acessível — pelo menos visualmente. A empregada doméstica que segue a blogueira de luxo pode não comprar a bolsa, mas vai na 25 de Março e compra uma parecida. E isso basta no grupo dela. As redes sociais acirram dois sentimentos muito brasileiros: inveja e medo. Invejamos os de cima e tememos os de baixo. Todo mundo. A rede social amplia esse abismo emocional — e obriga todo mundo a performar riqueza, até quem se diz contra isso.
Vogue: Você também fala que muitos ricos buscam legitimidade por meio de arte, cultura, filantropia… Isso conta como capital simbólico?
Michel Alcoforado: Em teoria, sim. Mas no Brasil, até isso vira “coisa”. A obra de arte vira item de decoração. O diploma vira enfeite. A filantropia vira planilha. O sujeito me diz que ajuda 30 mil escolas, 100 mil crianças, X milhões de reais. É como se estivesse falando de balanço de empresa. E o que eu penso? “Se ele doa tudo isso, imagina quanto dinheiro ele tem.” Ou seja, até a generosidade vira mais um elemento da ostentação.
Capa de “Coisa de Rico”
Divulgação
Vogue: E como isso se diferencia de outras elites pelo mundo?
Michel Alcoforado: Em países como a França, por exemplo, o sobrenome, o castelo da família, a linhagem nobre ainda têm valor. Aqui, não. O Brasil não reconhece pedigree. Então, para se diferenciar, o rico brasileiro precisa de coisa — roupa, carro, amigos, viagens, eventos, decoração, tudo isso. A distinção se constrói com o que se vê. Sem isso, você não “é” rico, mesmo que tenha dinheiro.
Vogue: No país da desigualdade, qual é o impacto dessa elite que se diz desapegada da própria riqueza?
Michel Alcoforado: Eu não conheço rico desapegado da própria riqueza. Eles podem ser generosos, sim, em maior ou menor grau. Mas desapegados? Não. Se fossem, estariam doando metade do que têm, como propõe a Giving Pledge. E adivinha? Dos poucos que aderiram, nenhum é brasileiro. Os sócios brasileiros dessas empresas estão fora. No discurso, pode até parecer bonito. Mas na prática… não tem desapego nenhum.
Vogue: Para quem não está nesse universo, qual é o principal insight que você espera transmitir com o Coisa de Rico?
Michel Alcoforado: Que a desigualdade brasileira não se sustenta apenas pelos privilégios dos ricos, mas também por esse impulso coletivo, quase neurótico, de produzir e preservar distâncias. Todo mundo quer parecer mais rico do que é, se aproximar de quem está acima, se afastar de quem está abaixo. E essa lógica contamina todas as classes. É isso que explica por que seguimos tão desiguais — e, pior, tão conformados com essa desigualdade.
Canal da Vogue
Quer saber as principais novidades sobre moda, beleza, cultura e lifestyle? Siga o novo canal da Vogue no WhatsApp e receba tudo em primeira mão!