Tyler, The Creator resgata a pista de dança em “Don’t Tap The Glass”

Tyler, The Creator resgata a pista de dança em "Don’t Tap The Glass"

Em pleno 2025, lançar um disco de rap que não fala só com a mente, mas com o corpo, ainda é um gesto de rebeldia. Mas Tyler, The Creator nunca foi conhecido por seguir padrões — e em Don’t Tap The Glass, seu novo álbum, ele faz exatamente isso: vira o jogo e propõe movimento. Literalmente.

A proposta é clara: menos tela, mais pista. Em tempos de repressão estética e vigilância digital, o artista californiano — conhecido por subverter expectativas desde os tempos de Odd Future — traz à tona uma pergunta simples e poderosa: por que paramos de dançar?

Com batidas que homenageiam a “era de ouro” do rap e letras recheadas de ironia, Don’t Tap The Glass é um disco que soa como um vinil antigo girando em uma vitrola moderna. Um convite para mexer os quadris e, com eles, a cultura que um dia nasceu desse balanço.


A maturidade irreverente de Tyler

Tyler Okonma já passou de enfant terrible do hip-hop a referência artística incontestável. Depois da introspecção de Chromakopia e dos experimentos melódicos de IGOR e Call Me If You Get Lost, ele agora ressurge com energia física e sem filtro. Não à toa, o álbum nasceu durante a turnê do trabalho anterior — nos bastidores, no corpo em trânsito.

A faixa “Big Poe”, que abre o disco, já traz a tônica: se mova, celebre, respeite o espaço. “Don’t Tap The Glass” não é só um aviso — é uma metáfora. Para a tela do celular, para a proteção das emoções, para o direito de dançar sem ser vigiado.

Nas redes, Tyler foi direto: muitos amigos admitiram que pararam de dançar com medo de serem filmados. O rapper responde com sarcasmo e groove, numa mistura de desabafo e provocação. E o recado está em cada faixa: Stop Playing With Me, Ring Ring Ring, Sucka Free — todas com beats contagiantes e letras que flertam com a comédia, sem perder o peso artístico.


Do Bronx ao TikTok: por onde anda o quadril do rap?

A dança é raiz do hip-hop. Está no próprio nome: “hip” (quadril), “hop” (pulo). Desde as festas de DJ Kool Herc no Bronx até os dias de hoje, o movimento corporal sempre foi elemento central da cultura — ao lado do MC, do DJ e do grafite.

Mas com a ascensão do gangsta rap nos anos 90, veio também uma rigidez estética. A dureza virou regra. E com a era digital, o medo do julgamento público fez o resto: dançar passou a ser sinônimo de exposição. Resultado? Um hip-hop onde o corpo sumiu da equação.

É contra esse congelamento que Tyler se posiciona. Em vez de rimas duras sobre status e poder, ele oferece batidas que pedem um passo de dança. Em vez de narrativas introspectivas e tristes, ele opta por refrões cheios de ritmo, gingado e… coragem.


Visual retrô, som de pista

A estética do disco é uma aula de referências. Na capa, Tyler posa como um b-boy dos anos 80: corrente dourada, boné vermelho e punhos prontos para o break. Os clipes seguem o clima VHS, com acenos visuais a Run DMC, LL Cool J e até Jamiroquai. A trilha sonora não fica atrás: samples de soul e jazz, bateria TR-808 e scratches que parecem tirados de um porão do Bronx.

Tudo é cuidadosamente construído para empurrar o ouvinte para fora do sofá. Para dentro da roda.

Em “Sugar On My Tongue”, a sensualidade da pista encontra um beat irresistível. Em “Tell Me What It Is”, a vulnerabilidade aparece — mas com leveza. O álbum inteiro se equilibra entre celebração e crítica, entre provocação e afeto. Entre o ontem e o agora.


Mais do que um disco: um manifesto pelo corpo livre

No fim, Don’t Tap The Glass não é só uma coleção de faixas dançantes. É uma tese musical. Uma defesa do corpo como território de expressão dentro do rap. Um lembrete de que o hip-hop não nasceu para ficar parado — e nem para ser só assistido.

Tyler, The Creator não está apenas fazendo música. Ele está propondo espaços onde rir, suar, tropeçar e improvisar não sejam atos de vergonha, mas de pertencimento. Onde a dança, por tanto tempo deixada de lado, volte ao centro da roda — e com ela, um rap mais livre, mais vivo, mais verdadeiro.