No ano em que o Brasil se despede de Preta Gil, um dos momentos mais emblemáticos de sua trajetória artística volta aos holofotes: a capa de seu álbum de estreia, Prêt-à-Porter, lançado em 2003. A imagem, que exibia a cantora nua, tornou-se símbolo de coragem e autoafirmação — e, ao mesmo tempo, escancarou o preconceito estrutural que ela enfrentaria ao longo de sua carreira.
Fotografada por Vânia Toledo, com direção de arte de Fernando Zarife, a capa trouxe Preta em um nu frontal artístico, adornada apenas com uma fita do Senhor do Bonfim cobrindo os seios. A ideia original previa uma tarja preta, exigência da gravadora para amenizar a repercussão da nudez. Preta, no entanto, recusou a censura velada. Optou pela fita como gesto simbólico de fé, resistência e identidade baiana.
O álbum apresentou ao público uma artista que já vinha de uma linhagem poderosa da música brasileira — filha de Gilberto Gil, afilhada musical de Gal Costa —, mas que fazia questão de construir sua própria trajetória, ainda que enfrentando resistências. Em entrevistas, Preta relembrou que a recepção ao disco foi marcada por ataques misóginos, racistas e gordofóbicos. “Na época, não se nomeava essas violências como hoje. Mas era tudo isso”, disse ela em conversa com Splash anos depois.
Apesar da reação conservadora, Prêt-à-Porter alcançou sucesso comercial e afetivo, impulsionado especialmente pela canção “Sinais de Fogo”, composta por Ana Carolina e Totonho Villeroy — um dos maiores sucessos de sua carreira. Com faixas como “Andaraí” e “Vestido Vermelho”, o disco firmava o nome de Preta como intérprete intensa, com uma mistura de pop, MPB e elementos de axé e samba.
A repercussão da capa, que em outros tempos poderia ter sido lida como apenas uma provocação estética, se transformou em marco político-cultural. Preta, uma mulher preta, gorda e assumidamente livre em suas expressões, enfrentou o conservadorismo de frente. “Aquilo me custou muito. Mas também abriu caminhos”, afirmou em diversas ocasiões.
Morre Preta Gil, após batalha contra o câncer, aos 50 anos
A música brasileira perdeu neste domingo (20), uma de suas figuras mais vibrantes e autênticas: a cantora, empresária e ativista Preta Gil. Ela tinha 50 anos e faleceu em decorrência de complicações causadas por um câncer colorretal, doença que enfrentava desde janeiro de 2023.
A notícia foi confirmada por sua equipe e repercutiu intensamente entre fãs, colegas de profissão e admiradores de sua trajetória multifacetada.
Filha do icônico Gilberto Gil e de Sandra Gadelha, Preta Maria Gadelha Gil Moreira nasceu em 8 de agosto de 1974, no Rio de Janeiro. Desde cedo, esteve cercada por grandes nomes da música e da arte brasileira, como Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, que ela considerava como tios. Essa convivência moldou sua visão de mundo e alimentou seu espírito artístico, embora sua carreira tenha seguido caminhos próprios e ousados.
Preta iniciou sua trajetória profissional nos bastidores, atuando como produtora e publicitária. Foi apenas aos 28 anos que decidiu se lançar como cantora, incentivada por amigas como Ana Carolina e Ivete Sangalo. Seu primeiro álbum, Prêt-à-Porter, lançado em 2003, causou polêmica ao trazer a artista nua na capa, desafiando padrões estéticos e sociais. A música Sinais de Fogo, presente no disco, tornou-se um dos maiores sucessos de sua carreira.
Ao longo dos anos, Preta Gil lançou outros cinco álbuns, entre eles Sou como Sou (2012) e Todas as Cores (2017), sempre abordando temas como amor próprio, diversidade e empoderamento. Em 2010, fundou o Bloco da Preta, que rapidamente se tornou um dos maiores do Carnaval carioca, arrastando multidões pelas ruas do Rio de Janeiro. O bloco foi transformado em DVD em 2014, com participações de artistas como Anitta, Lulu Santos e Ivete Sangalo.
Além da música, Preta Gil se destacou como empresária ao fundar a agência de marketing de influência Mynd, voltada para o trabalho com artistas e influenciadores digitais. A iniciativa reforçou seu compromisso com a representatividade e a valorização de vozes diversas no mercado publicitário.
Na televisão, Preta Gil atuou em novelas e séries, como Caminhos do Coração, Os Mutantes e Ó Paí, Ó, além de apresentar programas como o TVZ, no canal Multishow. Sua presença carismática e espontânea conquistou o público e consolidou sua imagem como uma personalidade midiática.
Preta Gil e as lutas sociais
Preta também foi uma voz ativa nas lutas contra o racismo, a gordofobia e a homofobia. Assumidamente bissexual, ela usava sua visibilidade para promover inclusão e combater preconceitos. Em entrevistas e redes sociais, falava abertamente sobre sua identidade e os desafios enfrentados por mulheres negras e fora dos padrões estéticos convencionais.
Sua batalha contra o câncer foi marcada por coragem e transparência. Desde o diagnóstico, Preta Gil compartilhou com o público cada etapa do tratamento, incluindo cirurgias complexas, sessões de quimioterapia e momentos de vulnerabilidade.
Em dezembro de 2023, chegou a anunciar o fim do tratamento, mas em agosto de 2024 a doença retornou com metástases. A cantora buscou alternativas nos Estados Unidos, onde passou por um protocolo experimental, mas não resistiu às complicações.
Preta Gil deixa um filho, Francisco Gil, músico integrante do grupo Gilsons, e uma neta, Sol de Maria. Mais do que uma artista, ela foi uma força transformadora na cultura brasileira, rompendo barreiras e inspirando gerações com sua autenticidade, coragem e alegria.