“Abílio: Determinado, ambicioso, polêmico” foi relançado nesta semana. A nova edição conta com um posfácio inédito da jornalista Cristiane Correa, que é autora do livro e especializada na cobertura de negócios e gestão.
Abilio Diniz construiu um dos maiores grupos varejistas do Brasil, o Grupo Pão de Açúcar (GPA), e foi um dos homens mais ricos do país, enfrentando crises econômicas, disputas familiares, a chegada de concorrentes estrangeiros e até um sequestro.
O empresário morreu dia 18 de fevereiro de 2024, aos 87 anos, em São Paulo. Abilio estava internado no Hospital Israelita Albert Einstein, com um quadro de pneumonia.
O livro traça um retrato de um dos empresários mais emblemáticos (e polêmicos) do país.
Nesta edição atualizada, o leitor tem acesso a um posfácio inédito, escrito após a morte do empresário, no qual Cristiane revisita o legado de Diniz. O livro já está à venda.
Confira abaixo o posfácio do livro “Abílio: Determinado, ambicioso, polêmico”:
“Era final da noite de 18 de fevereiro de 2024 em Portugal, onde eu passava uma temporada, quando fui despertada pelo toque insistente do celular. Atendi já ressentindo más notícias e ouvi a mensagem que temia: ‘O Abilio morreu’.
Eu sabia havia quase um mês que Abilio Diniz estava internado no hospital Albert Einstein, em São Paulo. E que seu estado não era bom. Mesmo assim, fiquei em choque. Havia encontrado com ele cerca de dois meses antes e o vira em ótima forma, sobretudo quando se leva em conta que já somava 87 anos de idade. Continuava magro e forte, mantinha aquela voz grave que silenciava o ambiente. É verdade que já há algum tempo a audição estava comprometida, mas um discreto aparelho nos ouvidos tratava de minimizar o problema.
Nessa minha última visão de Abilio, ele continuava a ser o “homem de ferro”, como foi descrito no prefácio deste livro, uma espécie de super-herói que “não tem superpoderes presenteados pela natureza ou pelo acaso, mas que constrói a si mesmo”.
Catatônica, sentei-me em frente ao notebook para escrever. Era o que eu achava que podia — ou devia — fazer. Mas o que dizer sobre um empresário que já havia sido tema de infindáveis reportagens? Alguém que entrevistei mais de trinta vezes desde o início década de 2000 e cuja trajetória transformei em livro? Haveria algo diferente a falar? Tudo o que me vinha à cabeça estava distante do seu lado empreendedor, conhecido no Brasil inteiro há gerações — e que eu já destrinchei nos vinte capítulos desta obra. Decidi
então me concentrar no homem, não no empreendedor.
Nas camadas dele que não ficavam sob os holofotes. Nas suas vulnerabilidades. Na sua fome de vida e no modo como encarava a finitude. Porém, antes, preciso voltar um pouco no tempo.
Em setembro de 2013, quando decidi escrever um livro sobre o Abilio e o procurei, expliquei a ele que, assim como minha obra anterior, esta seria independente. Na prática, isso significava que não teríamos qualquer vínculo e que ele não leria o livro previamente — muito menos teria a oportunidade de fazer qualquer pré-aprovação. O que eu lhe pedia era que me concedesse entrevistas.
Não era o formato que o empresário esperava. Abilio estava habituado a se manter no controle de quase tudo, e o que eu propunha era o oposto disso. Ele pediu um tempo para pensar. Dias depois, em uma nova reunião, concordou com o projeto.
Durante mais de um ano, mergulhei em seu universo.
Às vésperas da publicação da obra, ele estava ansioso e preocupado. Chegou a me perguntar se haveria partes do livro das quais ele não gostaria. Respondi que sim. Ele
ficou nitidamente contrariado e chegou a aumentar o tom de voz na conversa.
Mesmo assim, manteve o nosso combinado. A primeira edição deste livro saiu em julho de 2015 e, como eu previra, Abilio discordou de alguns pontos importantes. Um dos principais era como retratei a disputa dele com Jean-Charles Naouri, seu nêmesis que o levou a sair do Pão de Açúcar.
A versão que Abilio contava a todos e a si mesmo era que ele fora enganado pelo sócio francês. Para mim, que tive acesso a inúmeros documentos e entrevistei dezenas de pessoas, estava claro que ele havia assinado um contrato e se arrependido anos depois. Abilio não me telefonou ou escreveu para reclamar de nada, mas se distanciou completamente.
Ainda que eu o tenha encontrado em um ou outro evento depois da publicação, foi só quase seis anos depois que nos reaproximamos.
Àquela altura, entre diversas outras atividades, ele era a grande atração de um curso de extensão de Liderança e Gestão na Fundação Getulio Vargas, sua alma mater, em São Paulo. Certo dia, o coordenador do curso me telefonou para perguntar se eu poderia participar de uma aula.
A ideia era que eu conduzisse uma espécie de bate-papo com Abilio que teria duração de uma hora e meia. “O Abilio não fala mais comigo”, retruquei de pronto. “Ele está sabendo desse convite?” O professor, que desconhecia esse bastidor, respondeu que falaria com o empresário. Dias depois, me mandou uma mensagem avisando
que Abilio havia concordado.
Quando o dia chegou, me peguei ansiosa, sem saber como seria o reencontro. Eu já tinha presenciado várias facetas de Abilio: do gentil ao arrogante, do tranquilo ao mercurial, do carrancudo ao carinhoso. Qual delas eu encontraria?
Assim que ele entrou na sala e veio me dar um abraço, me tranquilizei. Não parecia existir qualquer ressentimento. Mas Abilio, sendo Abilio, não perdeu a oportunidade de me dar uma “cutucada”. A certa altura da conversa com os alunos, disse: “A Cris escreveu no livro dela coisas que não aconteceram exatamente daquele jeito, mas tudo bem”. Sorrimos e seguimos adiante.
Outras aulas se sucederam àquela. Eu aproveitei cada uma das oportunidades para tentar fazer com que ele revelasse coisas mais íntimas. Em uma ocasião, lhe perguntei se ele preferia ser ceo ou presidente de conselho.
Sem titubear, ele respondeu: “ceo. Presidente de conselho não manda nada”. Em outro encontro, admitiu que a característica de que menos gostava em si mesmo era a arrogância (a classe caiu na risada). Dois anos depois, quando repeti a pergunta, Abilio ficou em silêncio, pensativo. Eu o lembrei da resposta que havia dado antes.
“Eu já fui muito arrogante e você sabe disso, mas acho que deixei isso para trás”, declarou. Em um dos bate-papos, ele confessou que seu sonho de juventude era ser um goleiro que defendesse um pênalti em um jogo no Maracanã lotado.
Para surpresa geral, certa vez confidenciou que adoraria ter um talento: tocar bateria. E que seus cantores favoritos eram Gilberto Gil (“A música ‘Super-homem é sensacional”),
Roberto Carlos (“Podem achar cafona, mas eu gosto”) e Marisa Monte (“Dos
mais novos que ela, eu não conheço nada”).
No entanto, a aula mais tocante aconteceu em setembro de 2022. Seu filho, João Paulo, havia falecido no mês anterior (aqui vale dizer que, dois dias após a morte de João Paulo, os professores do curso receberam da coordenação um e-mail avisando que, segundo orientação de Abilio, toda a programação estava mantida). Era inevitável que eu tocasse no assunto.
A recordação do filho, que ele dizia ser seu melhor amigo, encheu seus olhos de lágrimas. Ao ver sua dor escancarada em frente aos alunos, lembrei que na língua portuguesa um filho que perde o pai ou mãe é chamado de órfão, mas que não existe palavra para classificar a situação inversa. Como se um pai ou mãe que perdesse a cria fosse algo tão dilacerante e antinatural que não pudesse ser descrito em uma palavra. Pela primeira vez, ao conduzir uma entrevista, chorei.
Logo depois, perguntei a ele como lidava com a passagem do tempo, um recurso que ficava cada vez mais escasso. “Tem um texto que explica muito bem como me sinto em relação a isso. Posso ler?”, ele perguntou.
Sacou o celular e leu “O valioso tempo dos maduros”, cuja autoria é incerta:
Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Tenho muito mais passado do que futuro. Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas, percebendo que faltam poucas, rói o caroço. Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte. Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas que, apesar da idade cronológica, são imaturas. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa. Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana: que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade, quero caminhar perto de coisas e pessoas de verdade. O essencial faz a vida valer a pena. E para mim, basta o essencial! À medida que ele lia, eu pensava como aquela demonstração de vulnerabilidade
seria impensável para o Abilio do passado. Os anos, o casamento com Geyze e as mudanças da vida — inclusive os tropeços e as perdas — o haviam suavizado.
Na última aula que fizemos juntos, em novembro de 2023, Abilio continuava malhado, animado, curioso e cheio de planos. Disse que faria um curso sobre inteligência artificial em Harvard no ano seguinte. Contou novidades sobre seu programa de entrevistas na cnn Brasil. Estava praticamente recuperado de uma cirurgia no joelho e passou a aula toda em pé diante dos alunos (enquanto eu estava desesperada para sentar, ele seguia firme).
Era um homem muito mais calmo do que aquele que eu conhecera mais de duas décadas antes. O Abilio dos últimos anos parecia um homem muito mais feliz e realizado do que o antigo todo-poderoso “Rei do Varejo”. Brincando, ele disse que quando partisse poderiam escrever em sua lápide: “Estou aqui, mas contra a minha vontade”.
No final de 2024, visitei seu túmulo, em um cemitério na Zona Oeste de São Paulo, mas, claro, a frase não está inscrita lá. Abilio detestava três coisas na vida: cebola, relógio e despedida.
“Despedida é uma tristeza. Eu gosto é do começo. Eu gosto do nascer do sol e não do crepúsculo”, disse em uma de nossas aulas. Para tocar em sua despedida final escolheu a canção “O que é, o que é”, de Gonzaguinha, uma de suas favoritas, sobretudo pelo refrão “Viver e não ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz…”. Abilio saiu de cena fiel a suas convicções: “Ser feliz, aprender, compartilhar.
Esse é meu propósito”, costumava dizer.
Talvez esse seja seu maior legado.”
*Uma versão resumida desse posfácio foi publicada no Brazil Journal em 19 de fevereiro de 2024.
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