Como Marília Mendonça reinventou o sertanejo

Como Marília Mendonça reinventou o sertanejo

Antes de se tornar a voz que embalou corações partidos por todo o Brasil, Marília Mendonça já havia marcado seu território onde poucos olhos enxergavam: nos bastidores. Aos 12 anos, ainda criança, escreveu “Minha Herança” — uma confissão dolorosa de um primeiro amor perdido. Um ano depois, foi contratada como compositora fixa da Workshow, produtora que definiria o som do sertanejo moderno. Nascia ali uma revolução silenciosa — e o Brasil ainda não sabia.

O novo episódio do podcast “Marília – o outro lado da sofrência”, do g1, mergulha nessa faceta pouco conhecida da artista: a Marília compositora. O programa revela como, muito antes de brilhar nos palcos, ela já imprimia sua alma em letras que falavam de dor, amor e força com a simplicidade e intensidade que só os grandes conseguem alcançar.

O termo “mariliônica” surgiu entre compositores como Vinicius Poeta para descrever uma música carregada de emoção, tensão e entrega visceral — uma assinatura que Marília criou ainda adolescente, trancada no quarto com um violão e um caderno rabiscado de madrugada. O irmão, João Gustavo, relembra os dias em que ela acordava chorando às seis da manhã, depois de passar a madrugada compondo. “Ela lamentava pelo amor perdido antes mesmo de saber tocar direito”, diz.

A intensidade de seus sentimentos era proporcional à força de suas criações. Wander Oliveira, empresário da Workshow, ficou tão impactado com o talento precoce que ofereceu um salário fixo de R$ 3 mil à garota de 13 anos. Ela usava o dinheiro para ajudar nas contas de casa, enquanto suas músicas eram gravadas por nomes como Henrique & Juliano, João Neto & Frederico e Maiara & Maraísa.

Marília não escrevia apenas canções — ela criava enredos inteiros em versos curtos, com uma habilidade rara de traduzir dilemas complexos em letras diretas. A obra-prima “Cuida Bem Dela”, por exemplo, eternizada por Henrique & Juliano, mostra uma amante pedindo perdão à esposa de seu ex — uma narrativa poderosa, sem moralismo ou clichês. Era arte crua, feminina, real.

A musicalidade também fugia do óbvio. Segundo o músico Gustavo Vaz, Marília recorria a acordes de empréstimo modal, técnica pouco explorada no sertanejo, que criava atmosferas emocionalmente densas — como no clássico “Infiel”. A música, inicialmente subestimada, virou um fenômeno ao dar voz a uma mulher traída que enfrentava o amante e o traidor com a cabeça erguida — um ponto de virada para a representação feminina no gênero.

O sucesso era inevitável. Em 2015, aos 19 anos, veio o aval para gravar o primeiro DVD. “Sou brega. Quero gravar brega”, disse Marília sem hesitar. Com parcerias estratégicas no Nordeste e noites insones de criação com Vine Show e Vinicius Poeta, nasceram canções como “Hoje Somos Só Metade” e “4 e 15” — esta última, rebatizada para evitar trocadilhos com o famoso “4:20”.

A estreia aconteceu em um estúdio inusitado, decorado com um lustre em forma de bateria. Lá, foi gravado o videoclipe de “Infiel”, sua porta de entrada para o estrelato. A música não era aposta de ninguém — mas se tornou hino de muitas.

Com apenas três anos de carreira como cantora, Marília já era reverenciada por gigantes. Em 2018, Gal Costa gravou “Cuidando de Longe” e a definiu como “a rock ‘n’ roll da sofrência”. A música, considerada difícil demais para o gosto popular, virou marco e reafirmou o que o Brasil inteiro já começava a entender: Marília não era apenas uma estrela, era uma força.

Morte de Marília Mendonça fez artistas repensarem logísticas na carreira

A cantora sertaneja Marília Mendonça, uma das maiores artistas de sua geração, completaria 30 anos nesta terça-feira (22). Em homenagem ao seu legado, o portal G1 lançou a série “Marília – O Outro Lado da Sofrência”, em formato podcast, sobre o impacto da cantora na cultura brasileira.

Apresentado pela jornalista Carol Prado, o primeiro episódio já está disponível nas plataformas e abordou o luto coletivo que sua partida causou. Mais do que saudade, a morte de Marília Mendonça fez diversos artistas repensarem sua rotina de trabalho pela insegurança, principalmente, no transporte.

“Não foi só um momento de perda. Foi um sacode nas pessoas: todo mundo começou a perceber que as coisas podem acabar a qualquer momento […] Eu acho que ninguém foi o mesmo depois”, conta a cantora sertaneja Luiza Martins.

Além da cantora, a dupla sertaneja Zé Neto & Cristiano também revelaram repensar a rotina após a morte da amiga e colega de trabalho: “Foi uma das piores fases da minha vida, quando ela foi embora. A gente tinha uma proximidade muito grande e eu fiquei muito mal, sabe? Eu não consegui… eu demorei para me reerguer”, declarou Zé Neto.

“Eu confesso que, às vezes, até sinto dificuldade em ouvir as músicas da Marilia porque não cai a ficha. [A morte dela] desencadeou traumas com a estrada, o medo, a insegurança”, complementa Cristiano.

Marília Mendonça faleceu em novembro de 2021, vítima de um trágico acidente aéreo em Minas Gerais enquanto estava em turnê do projeto “Todos os Cantos”, que a levou a diferentes cidades brasileiras, consolidando ainda mais seu nome na história da música. Aos 26 anos, ela deixou o pequeno Leo, fruto do relacionamento com o cantor Murilo Huff, além de um legado inesquecível para a música sertaneja.