Em 1994, o cantor e compositor Chico Science escreveu os versos “Computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro” para falar de avanços tecnológicos. Mais de 30 anos depois, a frase fica ainda mais literal com a presença de IAs que criam músicas, imagens e outras artes, enquanto artistas surfam na onda da tecnologia.
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Enquanto a inteligência artificial faz tarefas mais criativas (e até realistas), surge uma discussão: o que é criado por uma IA pode ser considerado autêntico? O debate vai além do simples uso da tecnologia, mas também engloba o jeito em que as ferramentas foram criadas e o que sai a partir delas.
O que é autêntico?
A discussão já começa com uma pergunta um tanto quanto filosófica. O dicionário brasileiro de língua portuguesa Michaelis define a palavra “autêntico” como algo “cuja autoria é ratificada” e “de origem comprovada”.
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Apenas a definição do dicionário já cria um dilema com a IA — afinal, os modelos de inteligência artificial generativa são treinados com base em conteúdos já existentes, como músicas, vídeos e livros.
Além disso, o termo ganha mais significados no meio criativo. Em conversa com o Canaltech, o compositor e produtor musical Felipe Vassão comenta que a originalidade vem da intenção do artista em falar algo e correr riscos.
“Se a pessoa está reorganizando alguma ideia de uma forma única, com um ponto de vista único dela, aquilo vai ser autêntico”, explica.
Diretora executiva da b+ca, agência de comunicação voltada para o segmento musical, Caroline Steinhorst entende que autenticidade é algo que precisa entregar uma experiência.
“Acho que está muito conectada com entregar uma emoção, uma experiência, passar um sentimento. Nós estamos vivendo um tempo meio confuso em que fica difícil definir se o autêntico é ser verdadeiro ou parecer verdadeiro”, afirma.
A IA é autêntica?
Serviços de IA são abastecidos por Large Language Models (LLMs), grandes conjuntos de dados que incorporam páginas da web e outros formatos de mídia. Ao fazer um prompt, a ferramenta considera toda essa base já existente para entregar um resultado ao usuário.
Essa estrutura levanta muitas questões sobre gerar algo original ou não. O produtor Felipe Vassão avalia que a autenticidade “é quase impossível” nesse sistema, então as criações ficam mais perto de edições ou da curadoria de montar um prompt.
“A IA generativa reorganiza padrões que já existem, ela não vive, não tem vontade, não tem intuição. Ela simula uma criatividade a partir de um monte de coisa que foi treinada, tira uma média disso, faz uma aproximação. Então, quando alguém diz que criou algo autêntico com IA, o que geralmente aconteceu foi uma curadoria ou uma uma edição sobre um resultado genérico”, acrescenta.
Caroline Steinhorst ainda alerta para o fato de que o treinamento dos modelos do IA não é tão explícito sobre os materiais que foram usados, o que pode abrir brecha para cópias e plágios: “você pode achar que criou algo original e acabar plagiando alguém ou algo que já existe, porque você não sabe de onde a IA pegou aquelas referências”.
Uma das principais IAs geradoras de músicas, a Suno foi processada pela Universal Music Group em 2023. De acordo com o portal 404 Media, a empresa admitiu durante a ação que a ferramenta foi treinada por “essencialmente todos os arquivos de música de qualidade razoável disponíveis na internet aberta”.
IA x samples
Discussões sobre processo criativo na música não são novidade e reaparecem com a chegada de novas tecnologias que aceleram a produção. Um caso comum foi com a técnica de sampling — retirar um sample (“amostra”, em tradução livre) de um áudio que já existe e aplicá-lo com um sentido diferente em outra música.
O processo, muito comum no rap e na música pop, foi difundido com a presença de equipamentos que armazenavam e reproduziam sons pré-gravados. A técnica já rendeu muita polêmica, mas é comum que os produtores deem créditos para as fontes originais nas músicas.
Por mais que exista um paralelo, o funcionamento da IA é diferente justamente porque o sample vem de uma fonte específica. “Você consegue identificar a amostra, correr atrás da liberação e a pessoa que é dona daquele sample pode processar você”, explica Felipe Vassão.
“No caso das IAs generativas, elas foram treinadas com um monte de músicas, textos, imagens e vídeos sem autorização, de um jeito que você não tem transparência”, adiciona.
Vassão ainda afirma que a técnica de criar samples exige um domínio que pode ser comparado a saber tocar um instrumento: “Existe uma certa ‘brincadeira’ de você alterar e processar tanto aquele sample que ele fica irreconhecível, como se fosse um um jogo de de pega-pega. Chega a um ponto de maestria fazer isso”.
Caso Velvet Sundown
Uma situação emblemática com uso de IA marcou o mundo da música em julho de 2025. A banda Velvet Sundown rapidamente começou a se popularizar no Spotify e chegou à marca de um milhão de ouvintes mensais na plataforma, mas algumas pessoas começaram a suspeitar do uso de inteligência artificial.
As músicas são claramente inspiradas no rock dos anos 1970, enquanto as fotos oficiais claramente indicavam uso de IA. Após alguns dias de discussões, a conta oficial do grupo confirmou que tudo foi feito com a tecnologia.
Em nota, o grupo afirmou que o projeto é uma “provocação artística” para “desafiar os limites da autoria, da identidade e do futuro da música na era da IA”.
O caso ainda teve destaque por causa da rápida popularidade que a banda alcançou no streaming, inclusive em recomendações automáticas da plataforma. Caroline Steinhorst opina que os responsáveis podem ter encontrado um jeito de atender aos requisitos do algoritmo e aparecer para as pessoas.
“Uma banda como essa, criada em cima de várias referências que um determinado público ouve, acaba funcionando naquele contexto. Me preocupa porque de uma maneira também ‘mata’ a criatividade dos artistas, porque te incentiva a fazer coisas mais parecidas”, explica.
Como resolver esse dilema?
Os especialistas consultados pelo Canaltech avaliam que as músicas feitas por IA (assim como outros formatos de mídia) não devem parar de crescer — as ferramentas estão cada vez mais acessíveis e realistas, além de contar com influência de Big Techs na difusão das tecnologias e de um possível interesse da indústria musical em reduzir custos de produção.
O produtor musical Felipe Vassão aponta que o público vai depender da postura das grandes empresas de tecnologia com o tema.
“Vai ficar cada vez mais difícil de diferenciar, vai ficar mais parecido com uma música ‘de verdade’. Está nas mãos das grandes empresas ajudarem a fortalecer e trilhar um caminho que não imploda com o nosso mercado”, comenta.
Algumas plataformas de streaming já tomam medidas para identificar e sinalizar conteúdos artificiais. O Deezer, por exemplo, possui um selo para informar se uma faixa foi criada com inteligência artificial generativa, enquanto o Spotify já excluiu milhares de faixas geradas para abusarem do modelo de monetização da plataforma.
Porém, a tendência é de uma abertura maior para a ferramenta no futuro, segundo Caroline Steinhorst, diretora criativa da agência b+ca. “Eu acho que isso [música feita por IA] vai existir, vai aparecer nas recomendações, nas playlists”, comenta.
A profissional acredita que a indústria precisa desenvolver algumas regras e práticas de uso: “a gente vai ter que encontrar a maneira correta de usar, qual é o papel de quem cria, de quem consome, de quem divulga”.
Por fim, Steinhorst avalia que nem mesmo uma avalanche de conteúdos artificiais pode tirar a vontade dos fãs de conhecerem experiências reais, como ir a shows e acompanhar os artistas.
“No final das contas, as pessoas continuam querendo a experiência do ao vivo, do real, ainda querem ir nos eventos. Pode fortalecer os artistas que vão conseguir criar essa conexão em que você consegue ver a pessoa, assistir a ela nos Stories, acho que é outra relação”, completa.
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